dezembro 26, 2004

O apaixonado

O apaixonado:
sobre como eu pude ser tão tolo.


Explicação I:
Certa vez ouvi dizer que não há antídoto para a curiosidade humana. Uma vez despertada, há de se conviver com ela. Ou dar-lhe um fim digno, procurar saná-la. Veja que não tenho nada contra os curiosos, se tivesse estaria pondo-me contra mim. A questão que me aflige brutalmente nisso tudo é o lado maligno da curiosidade, quando a tênue linha divisora entre o que é ou não salutar é rompida pela indiscrição. Quando, durante o seu banho, eu reviro os bolsos da sua camisa, verifico as chamadas no celular, dou uma fiscalizada na sua bolsa. E pior: quando estamos frente a frente e eu leio nos seus olhos as cartas de amor que você fez questão de esconder.

Explicação II:
Não há nada pior que as revelações íntimas que um olhar sem compromissos pode entregar. Hoje enquanto tomávamos o café da manhã você não falava nada, o silêncio era irritante e contínuo. Não havia porque prolongá-lo quando resolvi perfurá-lo delicadamente trazendo a sua pessoa para o centro de um proeminente diálogo:
- Ana, você está tão calada mas ainda assim me parece tão bem. Deixei de saber de alguma coisa sua?
Uma rala resposta sonora foi emitida por sua boca que saboreava o presunto que eu mesmo fiz questão comprar antes que você acordasse: “Hum, hum”. Como alguém pode quebrar de maneira tão eficaz um homem? Por que responder minha frase de palavras pensadas antes de serem docemente encadeadas, uma por uma, com um simples hum-hum? Eis um belo retrato do que estávamos sendo ultimamente, não por minha culpa. Meu esforço era visível e tolo. Mas ainda era meu, era esse agradável pronome que eu só podia empregar quando falava de esforços. E eu insisti neles:
- Olha pra mim, Ana. Você não parece à vontade. Anda, olha pra mim.
E aí você olhou. E eu fui extremamente indiscreto.

Explicação III:
Compreendo que estejamos desgastados, mas só compreendo pela prática repetitiva. Hoje é mais um domingo em que assisto sozinho o jogo de futebol pela tv, nem ao Maracanã eu quis ir. E logo agora, logo agora que eu já pensava que seria o momento ideal de termos o nosso filhinho, o flamenguistazinho por você tão esperado, você me apronta essa. Ah, sim! Na verdade você queria mesmo uma menina que, além de botafoguense, pudesse sair com você para ir ao salão fazer unha e cabelo. Tudo bem, tudo bem. Veja como as coisas mudaram, eu nem discutirei dessa vez. Que venha a menina, vou amar da mesma forma. Mas antes, que venha a mulher, a minha mulher que ainda não chegou.

Explicação IV:
Não há mais cerveja na geladeira, o sol já caiu, o jogo acabou. E agora, José? Se ao menos eu me chamasse José, talvez soasse mais atraente para Ana. Será José o nome dele? Se eu vier a descobrir o sobrenome do sujeito tratarei de dar-lhe uma lição. Mas isso me é curiosidade secundária. A primária é saber aonde a minha mulher se meteu, já é noite e nada. Não, não posso ter sido picado por esse veneno maldoso. Eu não quero mas meu corpo me conduz automaticamente para as gavetas do escritório de Ana. Minhas mãos trêmulas de culpa reviram aqueles papéis todos, uma foto de quando namorávamos (eu sem barba e mais magro), contas, telefones, papéis, papéis, papéis e cartão do Bar Aurora. Cartão do Bar Aurora? Por mais que me doa, afinal não sei o que me espera no bar, eu irei lá. É, irei sim, a cerveja acabou.

Explicação V:
Bar fechado. Mal pude acreditar. Estava em destroços. Crente, crente que seria o novo Holmes carioca. Eu era cacos. Meus pedaços ainda tinham alguma dignidade. Juntaram-se e me conduziram até em casa.
Ao chegar na portaria do prédio, alguma vibração visual quebrou meu momento introspectivo e me trouxe novamente para a realidade. O porteiro me olhava estranho. Parecia que sabia de algo e eu, pela primeira vez no dia, não tive a menor curiosidade em saber do que se tratava.
- Boa noite, seu José.
Cumprimentei-o e me dirigi ao elevador que lá me esperava já sabendo do fracasso da minha missão. Cheguei no meu andar. Minha porta. Minha chave rodando na porta. Meu apartamento, a sala. Acesa? Estaria eu tão seco de curiosidade a ponto de ter deixado o apartamento com a sala acesa? Não.
Era você, Ana, que havia chegado, o corpo atirado no sofá. Dessa vez não tive o cuidado de pensar antes de falar:
- Onde você estava, bandida? Quer me matar?
E você, incrível, você me respondeu com palavras:
- Matar de curiosidade ou de amor?
Silenciei. Eu tinha ali duas opções: descobrir onde você havia se metido o dia inteiro ou, quem sabe, reatar contigo, declarando tudo o que eu ainda sentia.
Na minha condição, não titubeei:
- De amor.
Reatei.

Explicação VI:
Porque o amor, cega.

dezembro 19, 2004

Tentativa primeira de não sofrer de saudades

Tentativa primeira de não sofrer de saudades

Não seria a saudade simples questão de costume desfeito? Rotina perdida?
Porque se há certeza nesse mundo, esta é a ação-reação de fatos que distam de teorias. Porque a vida que inicia, termina. A porta que abre, fecha. A luz que acende, apaga. A comida apetitosa, merda.
Talvez a saudade não seja nada disso do que nos foi ensinado. Não seja o tipo de prótese que dói, muito menos a fisgada no membro que já perdemos. Acho até mesmo que chronos não tem boca, nem dentes para morder.
Nenhum homem produz sem que haja a angústia e por isso Deus propôs a tristeza. A relação que há entre estes dois nomes já desbotados pelas dores excessivamente românticas é que o último serve perfeitamente de matéria-prima para o primeiro. E gostaram tanto dessa tristeza amarga aqui em baixo que adotaram-na em todos os aspectos.
O que seria da vida se não houvesse o fantasma da perda e do afastamento rondando mórbidos pelos vazios da cabeça? Entre uma reentrância e outra de nossa massa cinzenta encontra-se grudada uma dessas formas fantasmagóricas, sempre a nos alertar sobre o perigo do fim. Que sabor teriam as coisas caso estas fossem eternas? A certeza de um namoro eterno seria veneno na relação. A precisa presença de alguém querido, sem que houvesse a reação, talvez nunca despertasse a vontade de lhe dizer positividades e demonstrar carinho, amor. Quem sabe nunca nenhum sentimento fosse sequer notado. Porque o que é constante, aquilo que está sempre lá, decora tão perfeitamente os dias que passa desapercebido aos nossos rudes olhos. Eu, por exemplo, não sei das flores que brotam no meu jardim.
Para satisfazer-se, o homem moldou sentimentos a seu próprio favor. A proposta divina foi fagocitada sem resistência e, depois de digerida, deu origem a seus derivados. Sentimentos que se mesclam uns com os outros, outros genuínos que se utilizaram apenas de matérias-primas para nascerem. Todos adicionando elementos ao âmago da angústia, ponto ótimo de criações e reflexões. Dentre todos estes, eis que surgiu um em especial: saudades.
Sentir saudades é amplificação de dramas, é substrato para vida. É também, em certos casos, receio. Saudades é ambíguo demais para ser exclusivamente puro: há saudades que são tristes e há outras que são sorrisos nostálgicos. Este sentimento foi concebido pelo homem que sempre precisou da angústia. Senão no presente com sofrimentos de naturezas infinitas, precisou desta no passado ao reviver horas, dias, semanas e períodos à própria escolha.
Não vejo, portanto, dor na saudade; vejo a dura necessidade humana de sentir gotejamentos ácidos pela alma. E contorcer-se, relembrando e marcando a ferro a certeza de não poder mexer mais naquilo que se passou. Diferentemente da ansiedade pelo futuro que nos permite planejar fatos, mesmo que estes não venham a ocorrer. Pelo menos o sabor dos planos tem a possibilidade de passar por nossas bocas secas.
Saudades não é castigo. Saudades não gera estrangulamentos no coração e muito menos nós na garganta. E, se ao tirar a poeira das lembranças os olhos se inundarem banhando a pele com delicado e fino líquido, digo que não se trata de efeito da saudade. Digo o mesmo caso o sentimento de oco por não poder abraçar alguém invada o peito, murchando o brilho da vida.
Saudades não existe se você não quiser. Existe, a menos que você deseje com ela sofrer, utilizar-se dela para seu proveito.

Crê nisso tudo?
Eu adoraria acreditar.

Fingi-dor

Fingi-dor

Depois de bebericar sua pinga matinal, volta as ruas o turvo.Vê apenas vultos.Sinuosas sombras a descrever movimentos eróticos.O andar frenético de pessoas confusas, não lhe embaralha a vista.Seu olhar transforma em paisagens o caótico ambiente.Movimentasse como um narrador.Todos o sabem, ele é a voz da estória; mas ninguém o vê.Ao caminhar não deixa rastros.Suas pegadas são de areia e vento.É silencioso e sutil, o delirante vulto das calçadas.Será que existe?
Quando lhe sobe a mente o álcool-emotivo, grita.Não se sabe porque.Seu socorro gutural se exterioriza sem tradução.É a pura expressão de sua alma que se rasga, se torce sem nunca se remendar.E por mais alto que pudesse sair a agonia, raros eram aqueles que o ouviam.O ébrio, não lhe prestavam atenção os passantes.Ele coexiste como uma exclamação muda.Seu interior infinito de interjeições é seu mundo paralelo.Sobrevive então como espécie em cativeiro.Um fantasma de passado sem presente.Uma mente cega que sente falta do que nunca viveu.Palavra em desuso.Livro esquecido na prateleira.Som de palavra surda nos ouvidos secos a escutar vacos.
Para todos, seu pseudônimo é loucura.Isso por não saberem da amoralidade de quem está só em si.Não se sabe se um dia se percebeu no mundo.Nem se os sinistros que o sentem são reais.Pois algo tão subjetivo e esquerdo não poderia ser humano.Surreal criatura sem criador.Apenas cabível em gestos frágeis e transbordantes dos corpos calados.Sai em letras que formam palavras cheias de significados inventados.Engana-se ao tentar se esconder.Mente por nunca transparecer o involuntário.Finge ser a dor que deveras ama.
(Priscila Coli)

dezembro 12, 2004

Praxes de casal

Praxes de casal

{Ela sempre se atrasa!}Querida estou pronto!
{Como se eu já não soubesse!}Espera só um minuto!
E colocando com avidez a meia calça cor da pele que lhe escondia as imperfeições, pensava em não vestir preto desta vez.
{Eu engordei}Preto “trágico” novamente...
Pegou o vestido dito básico e o colocou de baixo para cima.Já estava com a mão no estojo de maquiagem quando percebeu que havia esquecido o sutiã.
{Ela acha que é a noiva!}Amor!...Estamos atrasados!
{Saco!Eu já percebi!}Estou terminando querido!
Pôs o sutiã que parecia não mais caber.Avistou o pó compacto e agarrou-o como um faminto que pega um pão.Passou com força a esponja no rosto.No seu inconsciente, achava que aquilo limparia-lhe a face de algumas espinhas que apontavam para guloseimas do dia anterior.Percebeu-se pálida no espelho.Procurou por um batom vermelho.Lembrou-se que odiava vermelho.
{Toda puta usa vermelho}Droga!
Sendo assim, começa a beliscar as bochechas, que ficam vermelhas de dor.Olha para cama tentando não ver a bagunça que fez pensando arrumar-se: potes de creme hidratante, toalha molhada e secador de cabelo dividindo o espaço com, praticamente, todo seu armário.
{Porque sempre perco tudo na hora que preciso?!}Ah!...Onde estão meus brincos?
{Daqui a pouco vou só}Lindinha, quer ajuda?!
{Homem nunca entende nada}Não...LIN-DI-NHO!
Depois de espernear, encontrou os brincos perdidos em meio aos tecidos.Pegou simultaneamente o colar e os sapatos.Correu para escada como se não soubesse os próprios pés.Desceu soltando a toca do cabelo.
{Até que enfim!}Está pronta?
{Ele é cego por acaso?!}Claro querido!Vamos?
-Vamos!- tateando o bolso da calça - Ihhh!...Espera um pouco amor...Esqueci os documentos!

(Priscila Coli)

dezembro 11, 2004

Palhaçada

Palhaçada

*Sou palhaço do circo sem futuro / Um sorriso pintado a noite inteira / O cinema de fogo / Numa tarde embalada de poeira* E a lona rasgada no alto / No globo os artistas da morte / E essa tragédia que é viver / E essa tragédia / Tanto amor que fere e cansa* - “O palhaço do Circo sem futuro”, Cordel do Fogo Encantado

O circo. Daqui onde estou posso ver de tudo. O picadeiro tem um cheiro próprio, é a serragem. Ou é magia? Chego antes mesmo do espetáculo começar e fico ansioso. Quero ver os palhaços. Quero ouvir as crianças, sentir o cheiro de pipoca, provar a tristeza do fim do espetáculo. Desejo cegamente que tudo se inicie porque preciso gozar o término. Começar é quase a certeza de que haverá fim e com isso eu estremeço num prazer interno. Quero os refletores refletindo luz de cores diversas. O picadeiro deve ser a porta da terceira dimensão, da quarta, da quinta, menos da infinita. Eu quero ver os palhaços a qualquer custo.
Posso ouvir o murmurinho das pessoas que adentram a lona vermelha. O som vai se amplificando, ouço risos, nomes, ouço a feliz ansiedade de olhos que brilham. Será que é essa a hora? É agora que começa?
Quero ouvir o senhora e senhores clássico e a equipe agradecendo a presença de todos. Quero ver a bailaria delicada me lembrando a melancólica melodia de uma caixinha de música. Quero ouvir os motores das motos do globo da morte. Quero. São tantos os desejos que carrego comigo que todos transbordam na conjugação deste que é o primeiro dos verbos a serem aprendidos. Melhor: antes de aprendidos já são praticados. Eu quero ver os palhaços, agora.
Eis que o espetáculo se inicia me mantendo estático durante bom tempo. O malabarista não teme cair dali de cima? E o domador, será que nunca teve medo dos leões o desobedecerem? A bailarina...! Sua dança esbanja técnica, harmonia, que belo, que belo! Meus olhos brilham como o de uma das crianças. É tudo novidade, é tudo interessante. E eu quero que seja contínuo, quero pensar que já vai acabar e sentir fisgadas e dores de estômago.
E já vai acabar. Olha o globo da morte! Olha o mágico! Veja, os elefantes são incríveis! Mas e o palhaço, e o palhaço? Quero vê-lo, a mim só interessa o palhaço e o fim.
E então o mestre de cerimônia anuncia a última atração. Sinto o prazer por saber que deleitarei a tristeza do fim em instantes; e sinto receio de que o palhaço não seja tal atração. Receio em vão. No centro do picadeiro surge o palhaço e eu choro. Reflexos são sempre duros de serem encarados. Ferem os olhos.
O palhaço faz graça, cai no chão, é enganado pelo assistente. E ri. Eu rio. Todos riram juntos. O palhaço não tem compromissos, não quer se superar. Ele faz o que pode e ri. Palhaços de verdade são tipicamente palhaços. E como é bom vê-lo! Acho que me sinto mais leve.
Fim de espetáculo. A sensação de que agora aquilo tudo que foi presenciado é passado, de que não há como viver aquilo novamente, dói e é deliciosa. Todos, inclusive eu, dirigem-se para a saída. Fica para trás um mundo.
Os créditos sobem e as luzes se acendem.

dezembro 05, 2004

Bailado sonoro

Bailado sonoro

No ritmo do tango te senti.Quadril com quadril.Olhar fixo.Intenso.Calor.Fulgor de almas irrequietas que se encontram.Dança febril.Envolvente atmosfera a se formar entorno do casal que não me incluía.Não era eu apenas.Era um parto uma outra aura que surgia ao ver os lábios vermelhos que falavam mudos.O som-explosão me transpirava nos cabelos, me cantava entre as pernas, me agarrava as mãos a agarrar sinuosas sua cintura.Untados.Um em somente dois seres.Era um quase campo de batalha.Combatentes a guerrear unidos.Forte e sonoro encontro.Até que no auge.Quando já não mais pensava.Quando era tão somente sentidos, a agulha sobe, a música morre e me viro eu apenas.

(Priscila Coli;29/09/04)

novembro 27, 2004

Ares suburbanos

Ares suburbanos

O subúrbio é quente porém preciso em sua imprecisão. As casas vazias de glamour, as casas-moradia, passam a impressão de que são abafadas sempre. Mal ventiladas. Talvez nem seja pela construção de humilde alvenaria mas pelo fato de não ventar por essas regiões periféricas.
Vejo o caminho do trem, aqueles ferros gastos e reluzentes, especialmente dilatados pelo sol a pino. Confundo os ambulantes de muambas com as pedrinhas que vivem pelo caminho do trem, tão miúdas que mal as vejo. É tudo muito pálido, numa rápida visão, mas há o brilho do lirismo nessas ruas sem charme.
Inúmeras crianças suadas brincam descalças, pés no asfalto quente, pés na calçada de pedra, pés no paralelepípedo cansado. Ouço o suspiro pesado dos paralelepípedos. São senhores tão senhores que, ao cumprimentá-los, coloco-os na posição de anciãos. Por isso não cumprimento asfalto; são uns moleques, ainda.
Na fiação das ruas sempre há uma pipa de cores desgastadas. Ou um par de tênis. A energia ali transmitida chega às casas e acende suas luzes.
À noite é possível encontrar nas esquinas churrasquinho por um real. Cerveja também, por um bom preço. A diversão não é cobrada. O bem estar de se sentir vivo, sem o asco burguês, isso é de graça. É acompanhamento.
Intimamente tudo isso me é necessário. Momentaneamente, naquele instante discreto a que se convencionou chamar fração de segundo, me encontro despido de preconceitos e de tolos conceitos. Encher o pulmão de ar quente, sonoro, humano; sinto certo prazer nisso. Receio, portanto, que esse prazer seja fruto de uma necessidade de me afirmar superior. Seria prazer maculado como o das primeiras descobertas. Mas ainda assim, fazendo jus à minha comparação anterior, seria prazer genuíno.
Costumo me sentar numa mesma padaria, sempre. Os galetos são até apetitosos, giram sem parar e atraem cães moribundos, vira-latas ébrios de fome. Me sinto como se fosse parte da paisagem que fotografo e isso me deixa secretamente satisfeito. E vem sempre o atendente moço, a má vontade característica acentuada pelo suor na face oleosa. Não há uniforme ou cardápio. A especialidade do bar da padaria, onde me encontro sentado, fica escrita em uma lousa verde-escuro, à giz. Mas nunca como nada, a não ser imagens. Peço apenas cerveja antes do calor me consumir.
Ali, exatamente ali naquela moldura simples, eu não tenho nome. Não tenho sequer um paradeiro. Para aqueles que adentram a padaria eu sou um pouco de tudo. Quem sabe um vagabundo? Um bêbado? Talvez um cansado trabalhador após seu expediente. Ou ainda um pai que fora ali comprar pão e aproveitara para dar uma descontraída. Tem até quem me cumprimente!
Sou tantos, pelos olhares posso sentir. E o gozo de poder ser infinitamente eu, eu que finjo ser um só, sou involuntariamente subtraído de mim mesmo. A conta nunca é exata, há sempre um resto orgânico que concebe novamente uma figura minha. Uma de minhas faces, um desses disfarces que mal percebo. É um prazer vicioso, uma alucinação positiva que me faz sempre querer voltar.
E volto. Volto porque sinto falta.
Antes de sentir saudades o que sinto é falta: é como se tivesse em mim uma parte vaga, um órgão oco, uma lacuna, vácuo na artéria aorta. Não há pesares nem lembranças, há apenas a necessidade do preenchimento que normalmente não tenho. (Talvez, se tivesse ainda que empregar a palavra saudade, pudesse dizer que acabo por sentir saudades de mim, em meio a toda falta que me lateja.)
Como uma folha em branco, porém com meu nome assinado, sou carregado sarjeta a fora pelo vento que nunca sopra pelas regiões suburbanas tão longínquas a mim. E lá vou eu para poder, um dia desses, voltar.

novembro 21, 2004

Lacônica

Tive uma idéia {olhos atentos}.Tão calada e tão tímida que nem eu mesma pude escutar.Paulinho da Viola pediria a pausa dos tais mil compassos.Eu {sorrisos de canto de boca}.Infâmia.Peço porém, um grito de mil almas{sibilos}...eu sei...Conheço as reações.O ranger de dentes que me observa a se decepcionar{rugas em testas estranhas}.E é por já ser sabida a reprovação que opto por não me abalar.Por viver sem me importar.Me morrendo a cada dia.Renascendo esquerda e torta{cruzam-se pernas inquietas}.Serei portanto uma quase pedra?Uma semi-árvore?...Tentando ser esse nada consigo ser apenas eu{gradação}.Remendada.Solta.Apenas.Somente.Eu{ahhh...clímax!}.

Sem melancolia, agora convincente e forte, peço que gritem as almas sonoramente contidas.Desafinadas.Pois se o silêncio me devora vetando as palavras, no barulho me encontro, me reconheço e vivo{sretytyujhhxnxksmssss}.

Priscila Coli

Amantes bem dosados

Amantes bem dosados

Uma colherada. A colher que afunda no conteúdo cremoso, sabor delicado de mel. É iogurte. A colher adentra a boca com a fúria de quem tem fome. E sai sutil e lenta, vazia. Tudo num ritmo desnecessário. Um desespero que deixa os lábios sujos com resquícios do derivado lácteo.
O telefone chama uma vez. Duas. Só atende na terceira, misticismo. Pega o telefone móvel e se dirige à porta de vidro da varanda. A chamada é à cobrar. Enquanto espera a mensagem da companhia telefônica observa seu reflexo no vidro. A boca está suja de iogurte. Parece estar engordando. Não devia chegar à varanda só de blusa e calcinha, era feio, seria vista.
- Alô? [...] É engano.
O telefone é graciosamente arremessado no sofá. A vista que tem da varanda é quase um auto-retrato. O mar arredio e um céu cinza, barulhento.
A solidão dá vontade de tomar um banho quente. Dirige-se até o quarto e liga a tv que passa o noticiário do fim da tarde. Nada daquilo interessa. Deixa num volume baixo e entra na suíte. Tomaria banho de porta aberta para ouvir a agenda cultural que seria dada em instantes.
Despe-se e liga o chuveiro. A suíte se enche de vapor, o espelho se torna mais agradável. No fundo a tv fala supérfluos. A água quente deixa o corpo mole, dá vontade de dormir. Mas passa.
Se fosse ontem. Ah, se fosse ontem! Tudo seria diferente. Em um dia o quebra-cabeça foi manipulado e nada mais se encaixava. Era a hora de ouvir o barulho das chaves na porta e perceber a maçaneta que girava. O som da pasta que repousava sobre a mesa de tampo de vidro. Os passos até o quarto, onde ela tomava banho, a gravata sobre a cadeira, os sapatos sendo guardados. Tudo em um silêncio detalhado que agora calava o ambiente de forma assustadora. Somente o som da tv.
Mas não deveria sentir saudades, nem falta. Os vínculos eram fracos e não deveria sequer amá-lo. Não deveria, pensava assim, porque podia escolher. Tinha esse tipo de ilusão densa que podava sua insegurança natural.

O telefone chama. Uma. Duas. Três vezes, atende.
- Alô?
- Tudo bem se eu passar aí agora, meu bem?
- É engano.
Era ele.
Melhor pôr um fim por conta própria. Não queria escândalos mais tarde, problemas com esposa traída. E se engravidasse num desses descuidos? Não. Era melhor acabar com aquilo. Os vínculos eram ainda fracos.
O telefone é graciosamente arremessado no sofá. Tomaria um banho e esqueceria rapidamente dele. Vestiria uma nova peça de roupa. Tomaria nota da agenda cultural e sairia em busca de uma diversão. Quem sabe não encontraria uma boa companhia?
Ela manipulava seu próprio quebra-cabeça. Ou pensava que o fazia: dosava.

novembro 14, 2004

Declaração reprimida

Declaração reprimida

Eu te olho tão fixamente que. Respiro assim de forma. Leve, ouço seus passos quando. Acho que sinto sua presença. Acho que sinto arrepio. Acho que me dá uma moleza. Acho o que acho sempre.
Te desejo tão obliquamente que. Me envergonho só de pensar em. O que podem fazer de mim se? Talvez eu devesse tentar. Talvez eu pudesse tentar. Talvez eu pudesse gostar. Talvez eu duvidasse da dúvida.
Sua presença me incomoda de forma absurda. A simples questão. Estar sem possuir. Se fosse em casos passados eu interpretaria o meu papel de quem luta pelos ideais. Até pelos ideais do coração. E da cama. Mas agora é perigoso, diferente. Não sei se vale tanto à pena arriscar.
É um desejo diabólico, é tesão reprimido. É pensar naquela boca e se forçar para des-pensar. Não pensar que pensou. É olhar discretamente seu corpo, sexualmente igual ao meu, os mesmos órgãos. E quase não aceitar que sente atração pelo mesmo sexo.
À ponto de. Puxar você pelo braço para. Não falar. Olhar. Venho escondendo meu olhar há tempos para você não me perceber admirador. Tenho vivido assim sem. Trégua, por favor.
Quero. Você.
Também quer?

Postado por ^Bia^

Postado por ^Bia^
Por problemas técnicos ou alguma deficiência de memória eu acabei esquecendo minha senha e meu e-mail não tá colaborando pra eu poder receber minha senha TT_TT Mas a Prii muito boazinha me emprestou a conta dela pra eu poder postar!! oba!! valeu!! \o/ Bom, esse é mais um desenhinho aleatório. Espero que gostem apesar da pintura <-- preciso trabalhar mais nisso ^^'''
Beijos, ^Bia^

1º Ato

1º Ato

Holofotes no centro.A platéia minguante a nos observar.Tentei disfarçar a vontade quase fisiológica de gritar.O cujo pelo qual eu tanto esperei, havia se consumado a milésimos de segundo.Não houve tempo para refletir sobre as sensações exatas.Possuo apenas um aperto na garganta, uma dor perto do peito e um vazio no estômago.Estou com vontade de chorar, porém não esteja triste.Minha cabeça embrulha-se em um turbilhão de emoções.Como no avesso de um filme, as imagens exibem-se sem seqüência.Permanecem embaralhadas.Incontextualizadas.Ainda verossímeis demais para serem reais.
Nesse palco do anfiteatro, dias antes da estréia, nos beijamos recíproca e explicitamente.O desejado ósculo não ocorreu com técnica.Pronunciou-se de fato, transitivo, englobando sentimentos fora do script.Quebrando a impassibilidade do momento.A esfera de cacos que nos envolve agora torna os personagens únicos. Confusos e à flor da pele.Nossos lábios ainda trêmulos, os músculos contraídos.Permanecemos abraçados a fim de perpetuar a autoproteção.Hálitos ainda se misturam compreensivos.Vontades transparentes neutralizam as palavras.Sabemos que qualquer verso bucólico e tradutor trairá a singela cena.Momentânea e eternamente estáticos. Paradoxais...Recobro a lucidez e acabo por perceber que não lembro do texto.Afasto-me assustada de ti. Passos lentos. Olhar perdido. Mente confusa.Vejo no teu rosto a solução se concretizar. Corpo aflito.Suas lágrimas descem suaves.Choro cândido.Contentamentos puros a se desdobrar.O coração aberto conduziu teu pensamento.Guiou teu falar.A língua, a estalar no céu da boca, pronunciava leve a palavra AMAR.
Som de aplausos.Absortos e distantes.
Priscila Coli

novembro 06, 2004

Bianca

Bianca

Bianca, prazer. Nesses anos de relação eu esqueci de te apresentar. Essa Bianca que te imobiliza o físico e o espiritual. Que te prende entre as pernas e apóia parte do peso pondo as mãos em seus ombros. Pernas que não são minhas, nem suas. São de Bianca, apenas.
Bianca que te olha de cima. O prazer é todo meu. É nosso. Simultâneo, um espera pelo outro. E pronto. A Bianca se esvai como o seu líquido que se perde por dentro de mim, nessas nossas entranhas.
Deposita-se brevemente em meu corpo. Tomo todo o cuidado de impedir que frutifique. Aguardo que meu organismo cumpra o papel de recolher os seus pedacinhos que guardei comigo da noite anterior. Para que assim eu possa despertar no dia seguinte sem encontrar seus resquícios ao me olhar no espelho. Deixar oculta uma parte de mim. E viver de forma imoral.

outubro 30, 2004

Escarro

Escarro

Em cima do meu corpo se esfrega frígida, tua carne.Teus ossos machucam os meus, que ávidos de luxúria, não sentem a fúria.Tuas garras a me arranhar e os pêlos caninos a macular minha pele lívida.Sinto náuseas.Dor ejaculada.Sinto a mágoa que me excita.

Escarrei, não comedi.Gozei enfim o último soneto.”Com carinho e amor...” e meu nome assinado.Assino para que não duvides da procedência.Assino para que identifiques o teu frágil animal domesticável.

Gerei apenas um suspiro, lânguido e sofismático.Suspiro de fim.Ao olhar os olhos agonizantes que me observam sem me ver, percebo a satisfação da certeza de posse.Percebo que seremos em vão carne podre.Nos enterraremos em terra própria.Terra seca, de amores árida. Rachada por nossos gritos grotescos.

Respiro exausta, depois de ver naquele espelho de motel, não estrelas, mas dois trapos que se refestelaram com prazeres escusos.Nem trepando somos um casal.Não nos encontramos, não nos sentimos.Nos entregamos sempre a esses venenos solitários e viciosos.Formamos a anti-reciprocidade.Formamos a matéria inerte que insistem em chamar de enlace.
(Priscila Coli;25/10/04)

Uma rua e aquela paixão

Uma rua e aquela paixão

O chop gelado faz o copo suar no calor do Rio de Janeiro. Rua da Carioca. Sempre que passo por aqui os anos vividos se transformam em fatos que ainda me doem. As lojas de instrumentos musicais compõem a fotografia perfeita que trago comigo, desde a última vez em que estivemos juntos. Ainda paro em frente às lojas com a mesma cara idiota que hoje é refletida parcialmente pelo vidro das vitrines. Saxofones, saxes. Incrível como ainda me lembro de cada vibrante palavra sua comentando sobre a paixão que tinha por Stan Getz. Parece que foi ontem. O tempo não tem sido justo comigo.
O bar está cheio. Horário de rush no Bar Luís. Garçons se desdobrando e eu beliscando pedaços de melancolia quase crônica. Sozinho na mesa em que costumávamos sentar após as peças assistidas. Comentávamos deliciosamente. Chop amargo, amarguíssimo.
As imagens não se apagam e eu sempre me pego te olhando como da primeira vez. Jazz-band e você lá. Você lá. Sempre lá. Até que depois de decorar o repertório inteiro de um mês eu resolvi me aproximar. Se eu soubesse que seria tão bom não esperaria nem meia música para te abordar.
O Cine Íris me faz recordar brincadeiras. Um sorriso abafado pelas lembranças até se atreve em aparecer. Noites inspiradas, aquelas. Noites que jamais consegui repetir. Noites que não mais me são reais se comparando às minhas noites mornas em que divido minha angústia com a máquina de escrever.
Pensei que te encontraria aqui. Mas não. Ainda tenho coisas suas comigo e preciso devolvê-las. Alguns Cds e dois livros. A música dos dias vividos por nós precisa parar de tocar para mim. Já tentei arrancar suas páginas mas seu conteúdo permanece comigo.
A conta, por favor. Por hoje basta.

outubro 23, 2004

Vago enredo

Vago enredo

Foi num enlaçar frágil de mãos insertas que relembrei o meu passado.Importuno.Insignificante como a luz a entrar pela fresta da janela.Ilumina a cadeira em que sento e não a folha em que escrevo.

Como um tesouro que tem o mapa queimado e os cúmplices fantasmas, eu escondi minha estória.Intransitiva, fiz questão de apagá-la.Amnésia consentida.Desvario voluntário, porém, insipiente.Não poderia cortar da memória parte ainda latente, a qual sobreviveu feito um esporo durante anos.

A nostalgia voltara, com toda sua efusão de imagens e sensações.Triste momento em que suas mãos trouxeram à tona essa sombria realidade.Lágrimas raivosas, suspiros solitários.Um espectro doentio que já havia sumido.Ou talvez estivesse mascarado, escondido nos sorrisos amarelos que forjei durante todo esse tempo.Mentiras próprias, vadias.Pronunciavam-se a qualquer um que lhes desse migalhas de atenção. Ladainhas intrínsecas ditas repetidas vezes, agora me denunciam. Neste minuto, estampadas em minha face, me marcam como gado e voltam-se para o passado sem lirismos.Expõem verdades que corroem de dor meu ser.

Nesse simples afago de suas garras, hoje enrugadas, vejo torpe de desespero, que para tirar o calor das cicatrizes deixadas por elas teria que suicidar a mim.Quebrar a essência viciada, podar as daninhas da esperança que se fincaram na alma.Seria preciso evadir-me amoralmente parindo por náuseas mais uma capa oca, amarga e piedosa.Personagem sem papel, como este que agora jogo fora.
(Priscila Coli;17/10/04)

outubro 17, 2004

Bom apetite!

Pois quase se engasgou com a espinha do peixe. Como aquele moleque atrevido tinha a cara-de-pau de lhe falar em dinheiro à mesa? “Só preciso de uns dois tostões, mais nada”. Mais nada, tem certeza? Mas que idéia mais torta a desse guri, como se a quantidade que pediu lhe fosse pouca coisa.
Passado o susto e as caras hilariantes de uma família que fingia preocupação com seu estado, era hora do troco. Troco não, porque lembrava dinheiro e isso era algo que não tinha e nem queria ouvir falar. Ora essas. Filho é besta mesmo. Parece que não percebe o esforço de todo dia e, além de não perceber, acha que os pais sabem fazer multiplicar esse maldito papel-moeda.
- Somente dois tostões, meu filho?
Esperava, porque sempre esperava alguma coisa de alguém, que o filho, pelo menos, lhe respondesse positivamente. Deveria também olhar para o chão, numa atitude de reconhecimento de sua dependência econômica. Estava atrelado ao pai. Que bela criança. Dependia dele, sozinho nada era. Nada mesmo, viu?
- É, velho. E se o senhor pudesse me descolar uns trocadinhos a mais, só por via das dúvidas, pra não ter que ficar andando com dinheiro contado.... sabe como é, né? Acho que o senhor me entende.
Opa, mas que abuso! Moleque safado, ousou em quebrar a expectativa do bom pai de família. Ele, que deu o suor, a vida, os sonhos pelos filhos e que, agora, se sente como um cachorro manco. Desprezado. Sua figura se resumia ao dinheiro, era isso? O jeito é ensaiar o choro, estremecer a voz. Que tal? Vamos lá, o drama é necessário nessas horas. E as portas, então, se abrem para o discurso que leva tempo e o resto do apetite.
- Tá ok, velho. Tudo bem. Não precisa me arranjar os trocados, então. Eu me viro com os dois contos.

Oh menino sem vergonha. Ainda não entendeu que é o problema todo não é só o dinheiro. É burrrinho mesmo. Papai sempre achou que ele era esquisito, não gostava da matemática, nem da física. Ciências de gente inteligente. De homem de futuro. Ele gostava mesmo era de ler, falava numa tal literatura e vivia gastando dinheiro com essas bobagens.
Parecia que o moleque não percebia que o negócio era mostrar que, sem o pai, sem o esforço dele, sem sua boa vontade, sem seu dinheiro – é, inevitavelmente sem o dinheiro – ele não poderia. Rapaz, reconheça a dependência.
Mais atrevido era o pai, então. Vê se pode. Mas tudo bem, o que não se faz por interesse? Numa relação de troca vale tudo.
Olhar baixo, discurso de reconhecimento, exaltação e reverências ao super pai que ocupava a cabeceira da mesa. Os dois contos em mãos. Ah, aproveita e fica com esses trocados também, talvez seja necessário, quem sabe. Preocupação de cristal. Ou melhor: de porcelana barata.
E os domingos ainda são especialmente santos.

outubro 15, 2004

Relação a três

Relação a três

Eu, você e eu. Todo o seu tempo para mim. Seus ouvidos para ouvirem meus devaneios e declarações. E o resto do corpo para testemunhar a minha dependência.
Eu, você e eu. Sua vida para responder aos meus anseios e suas palavras para serem formuladas por mim. Seus atos seguindo rigorosamente meus roteiros. E suas reações para satisfazerem as minhas expectativas.
Nós e você. Meu servo, me servindo sempre. Me enfeitando ao agir de acordo com minhas doentes fixações. Sendo projeção daquilo que espero. E me atendendo durante todo o tempo em que estivermos juntos.
Você e nós. É só adotar um comportamento opaco para me esfacelar por completo.

outubro 14, 2004

Parcos questionamentos

Parcos questionamentos
Parado estas de fronte ao público.Quantas chagas a contar.Quantas ladainhas a cantar.De pedidos te enchem.Será que ouves?Quanto da vida sabes?Se é que existes.

De braços abertos, figura soberana, olhai por nós!Nós que te inventamos formulando a tua última criação.Nós que te pregamos, te rasgamos e matamos.Esses mesmos que inventaram o pecado, dizendo-se éticos, precisam agora do teu perdão.”Senhor, tem piedade de nós!”

Sentado em teu trono divinal, habitando teu parnaso, o que fazes que não lês nas mentes doentias o refrão sonoro que te clama?”Venha vós ao vosso reino!” Por que exilas teus filhos?Por que nunca és bom por completo?

Faz muito te vestiram um manto e de branco te pintaram.Se és igual a todos qual a causa de tal singularidade?Deixaste te moldarem ao seu bel prazer.Deixas que te invoquem por motivos ilícitos.Transformaram-te em pragmático e maniqueísta.Trabalham para tua riqueza e dispõem de tua fraqueza para comprar corações.

És um bom investimento. És um bom ganha-pão. És visto como santo e tratado como Adão.
(Priscila Coli,22/09/04)

outubro 10, 2004

Conceitos

Conceitos
Estou mole. Tenho estado mole. É essa cidade envolta de montanhas. Altas montanhas vestidas de verde e vestidas de gente. Gente pobre, vida podre. Outro dia ela manteve contato comigo. Sua face, a mais dolorosa. Doeu num estalo, foi como um tapa na minha cara. Cara de gente tola, que só desperta quando é atingida
A visão da linha do horizonte anda meio interrompida. Meio totalmente. Não tenho ido mais à praia para me encontrar com o infinito. Não sobra tempo. Meu infinito se esgota na contagem regressiva da vida. Às vezes tudo é tão chato que perde o sentido. É quando sinto um certo medo. A vida deve ter um sentido, sim? Até ontem, antes de falar com ela, eu achava que sim e que isso valia para todos.
Meu infinito tem sido o concreto que dista da zona litorânea. Concreto abstrato, que se revela aos meus olhos por ser fruto de uma combinação de átomos e moléculas que jamais serão vistas por mim. Pode surgir a mais avançada ciência, capaz de fazer uma leitura dessas estruturas atômicas. Não creio nelas.
Sem crises, sem lágrimas e sem dramas. Talvez eu pudesse me aposentar de mim. Mas me acho ainda muito jovem para isso, apesar de reconhecer que muitos na minha mesma idade já estão aposentados há muito tempo. Ou, quem sabe, talvez seja a hora de ver nas montanhas a linha do infinito da realidade brasileira.

outubro 02, 2004

Solidão luminosa

Solidão luminosa

Saía toda tarde melancólica para ver o por do sol.E o sol ,solitário, lhe fazia companhia.Despediam-se de um mundo com toda efusão de cores e entravam na sombra de suas vidas,no breu de suas sinas.Penumbra que mesmo com a promessa de um novo renascer, ressurgia igual ao anterior.

Imutavelmente ela olhava os arrebóis como se procurasse um sentido para aquilo.Sentido para sua própria existência contínua.Talvez tivesse mesmo o espírito solar, retorna todo dia para tentar modificar.Vê as tardes como fins de ano, onde há esperanças de novidades.Tenta encontrar uma maneira de evadir, sair de sua pseudovida-latente.

Tinha seu rosto pintado em moldura inexpressiva, porém seus olhos eram úmidos de subjetividade.Revelavam mais do que ela queria aparentar.Pensamentos vagos e tímidos.Frágeis convicções que se desfazem ao vento.Sábia Brisa!Segue levando consigo palavras sufocadas, gritos mudos.Frases inteiras formuladas durante séculos intimistas.Corajosas proposições internas que ao entrarem em contacto com o mundo externo se mascaram frustradas e desaparecem.

Compartilhavam do mesmo sentimento.Provocavam a mesma sensação.Insensibilidade.Os transeuntes sentiam suas presenças e as comentavam, mas não as compreendiam.Eles refletiam a mesmice.Clichês.Parcos, mas necessários clichês.

Ela permanecerá observando o crepúsculo por muito tempo.Sem nunca se alterar com a beleza do degradé formado.Parcimoniosa.Impessoal.Seu olhar continuará perdidamente expressando dúvidas implícitas.Um dia saberá que o que procura na luz parva desse astro simbólico é a expressão do seu próprio eu.A vontade de viver que ela deixou para trás.O presente do qual ela insiste em não querer participar.
Priscila Coli;27/09/04


Casal

Casal

Deu-me espinhos para pendurar no pescoço e pediu para que eu gracejasse com estes. Eu deveria andar harmoniosamente pelos pátios imundos da vida, como se estivesse a desfilar para uma multidão de faces sequiosas pela falha, um mosaico de gente, que goza com as críticas que faz. Recomendou que eu mastigasse os dias de fel, sempre sorrindo, imaginando que aquela pasta rançosa e amarga fosse um doce perfeito, quando na verdade não era e nunca será. Orientou que eu sentisse calada as dores de um estupro diário que violentava minhas ações e conceitos. Falou tantas asneiras que eu vivi a te omitir, como faço agora nessas construções de ódio. Mas, no final, sempre aparecia e soava mais alto dentro de minha fraqueza humana.
Mostrou-me, em suas tentativas de fazer um bem duvidoso, o lado sombrio de uma relação que nunca quis. Me fez agir como falsa, pilantra, mesquinha. Devia aceitar tudo como se fosse natural e sorrir quando meu mundo desmoronava por dentro; fingir prazer quando os gemidos eram de uma dor existencial e seguir em frente, esquecendo-me do que havia de verdadeiro dentro de mim.

Por isso não te dou o direito de reclamar que vive hoje com um ser estranho, uma mulher cheia de mágoas e de olhos que jamais brilharam. Você me construiu assim, projetando suas fraquezas nesse corpo que era seu e me ensinando como errar em todos os campos possíveis. E eu me permiti, temendo o peso de um véu branco que tornou negra toda uma vida.

setembro 26, 2004


aahh consegui!! (com uma ajudinha da minha irma XD) essa foi a ideia q eu tive com sanatorio ^^'''
espero q gostem!! bjoss^^

Brincando de boneca

Brincando de boneca

Nostalgia? Talvez. A verdade era que lhe havia batido uma enorme vontade de se sentar no chão, despreocupada, e brincar de boneca. Não precisava de companhia. Podia ficar sozinha, aliás, achava que assim seria até melhor. No fundo, sabia que sozinha não estava. Brincava consigo procurando desvendar a melancolia que lhe umedecia os olhos.
Não era de hoje que sentia esse tipo de vontade. Sabia que não queria voltar à infância, caso fosse possível, mas guardava consigo um nó na garganta que lhe comprimia os olhos, gerando algumas tímidas lágrimas.
As bonecas brincavam com ela concedendo a evasão de que necessitava. Era ela quem montava as histórias a serem vividas, fingindo ser Deus, saboreando a ponta de um poder que sabia que jamais conheceria.
Gostaria de conhecer. Formularia um caminho perfeito para si. Analisaria de fora sua vida e saberia o que fazer nas situações mais complicadas. Mas, sabiamente, reconhecia que isso era uma bobagem. Sempre que planejava trilhas perfeitas a serem percorridas por suas personagens inanimadas, tudo acabava cedo demais. A monotonia se instalava na situação como um câncer, tomava grandes proporções e fugia de controle. Findava a brincadeira, aniquilava toda a graça. E ela não queria que sua vida também fosse assim. Já bastava a miserável angústia que lhe habitava o corpo nos últimos tempos.
O que lhe confortava era a certeza de que maior angústia não sentiria, uma vez que esta seria fruto de uma vida constante em todos os seus sentidos. E a vida nunca é constante. Aprendia isso todos os dias, sozinha.
Mas não tinha tempo suficiente para se confundir entre as bonecas que estavam no chão. Não tinha tempo de fugir um pouco de toda a conturbação que lhe acompanhava. O melhor que tinha a fazer, então, era levantar-se, lembrar-se dos seus trinta anos, acender seu cigarro e sair para o trabalho.

setembro 25, 2004

Cheguei! XD

Oiee!! Nova membra aqui! ok ok eu naum escrevo, mas pra que ver minhas "belas" redações com textos tão legais aqui?? (meninas de talento! *-*) O blog tá muito legal e espero que dure por muuuito tempo!! adoro vocês!
bjos ^_^
PS: eu tinha preparado uma coisinha mas to tendo serias dificuldades pra postar figura T_T ... entao mais tarde eu tento

Parindo obras

Parindo obras
Preciso respirar.Há muito tempo não sinto essa tênue sensação.Frescor interno!Esse acalanto que unta meu ser faz florescer a criação e não o criador o qual se torna coadjuvante.Mas, como numa relação de amor materno, não se importa em dar a cena para que seja roubada infurtuosamente.
Sinto-me agraciada com tal divina obra.Causo espanto ao contar tais reações.Tantos gostariam de estar no palco, ganhar aplausos de reconhecimento.Porém quando se cria não se pensa em si, começa a dar-se por completo.Já não se denomina indivíduo.E se por um lado se é intransitivo por outro se sente completo.
Como em um parto normal, nasce da angústia dolorosa um pequeno ser.Miúda vida singular, que é livre.Livre porque ao ser visto por outros olhos ganha diferente vulto e sina ímpar ao esperado.
Desenvolve-se, cresce, como se estivesse em sua essência viver tudo que tinha para viver.Predestinado.Recolhe pela vida palpites, opiniões, histórias, dores, lagrimas e sorrisos.Após elevada carga emocional,se concretiza.Se firma fincando raízes fortes que apesar de várias interpretações tem um sentido primo.
O autor se vai, mas me utilizo de um lugar comum, para falar que seu trabalho permanece.Talvez sejam invertidos os objetivos, todavia a cada época se eterniza acarretando múltiplos efeitos ao seu redor.Cativa, molda e assim gera descendentes que lhe conferem continuidade eterna.
(Priscila Coli,20/09/04)

setembro 20, 2004

desculpas

Desculpas

O arrependimento doía mais porque feria o orgulho. Aceitar que havia cometido um equívoco seria demais. O julgamento precipitado, que nem deveria ter existido, pesava a consciência e inibia. Causava uma vergonha que tornava tudo pequeno. Reduzia ao nada. Um ser humano vazio e superficial é o que era.
Defrontando o espelho, encontrava esta imagem distorcida que incomodava o olhar. Este, que procurava sempre a melhor reflexão, amuado voltava-se para dentro e percebia a falha fatal. Reconhecê-la, porém, era o que traria à tona as máculas amargas.
Era mais fácil acreditar na constância do ser humano e em seu papel de coadjuvante na vida das pessoas. Manter-se sempre na defensiva acabava por ser tentador. A hostilidade das palavras e dos gestos cabia perfeitamente nesse jogo perdido. Um jogo sem placar. Inútil. Um jogo de relações mal resolvidas. E de uma questão besta de manter tudo isso igual.
Despontava, assim, um orgulho dilatado que foi responsável por cegar boa parte do convívio e que impediu a visão da tolice propositalmente alimentada por todos os dias.
Quando percebeu, desarmou-se. A realidade da estupidez despertou o grande engano que havia sido cometido. O orgulho foi engolido. A humildade de reconhecer a besteira fluiu pelo corpo. Um minuto. O arrependimento pulsando nas veias e uns olhos cheios de lágrimas. Dos lábios trêmulos e de um coração maduro brotou o pedido:
- Me desculpe!

setembro 19, 2004

Depois de um longo e tenebroso inverno,eu consigo postar!!!(rssss)
Não sei bem por onde começar mas acho que vou tentar passar oq o blogg significa para mim.Penso que vai ser como um mundo paralelo,sem ser individualista!Será um espaço de encontros em todos os sentidos,com debates,teses(ual!) e claro palavras.Muitas palavras!Todos terão um ponto singular nessa página,afinal,somos quatro pessoas diferentes,escrevendo sobre assuntos diversos.Vamos copartilhar idéias e isso vai ser incrível!
Meninas amo vcs!
Bjos da Pri

setembro 14, 2004

estreia

Começo
Este é o começo do blog. Não sei o que marca o começo das coisas. Depende da coisa. No caso desse blog acho que é difícil definir exatamente quando ele começou. Aqui na internet, está sendo fundado agora. Mas a idéia de montá-lo já pairava sobre nossas cabecinhas (nossas: eu, Priscila, Rafa e Érika) há algum tempo. De alguma forma, e digo isso por mim, escrever se tornou uma necessidade. E de alguma outra forma, nós quatro entramos em sintonia num mesmo momento e resolvemos publicar nossas idéias aqui no Sanatório Geral. E aqui está o blog! Espero que possamos dividir textos, idéias e reflexões por aqui!