dezembro 29, 2008

Da surpresa

Todas as estórias reacendem, e inflamam. Ele foi um passado fechado, filho frutífero do esquecimento que, desde aquela longínqua cena em ano já perdido, em frente ao Theatro Municipal, ambos se despediam com vistas ao próximo encontro - próximo encontro que, passados anos, nunca foi sequer recogitado.
Depois do aceno final, flavam-se sem freqüência. O tempo foi cobrindo com poeira, e as lembranças pareciam mais ficção de alguém fissurado por letras do que, propriamente, aquele quadro de impulso inebriado, contendo a indizível beleza evidente que ele despertava nela.
Houve um dia em que ela - também por impulso - postulou uma raíz profunda de esquecimento. Os contatos que iam diminuindo, reduzindo, escasseando cada vez mais - tanto na quantidade, quanto na qualidade do interesse - traziam uma impressão penosa. Aquela nova posição estabelecida pela decisão silenciosa e não declarada do não-encontro futuro, a tornava apenas uma mulher que ouvia os relatos que ele ia lhe narrando, sobre as mulheres por quem ia se apaixonando, as noites bêbadas, as poesias novas, as estórias de felicidade e descomprimisso. Assim, ela decidiu que não queria mais; assim, ela decidiu que o que era para ser esquecimento devia habitar uma idéia de passado, e, finalmente, ficar preso a uma escala de tempo, uma cronologia sustentada pelas suas emoções que, sinceramente, não estavam tão interessadas assim a dedicaram-se àquele homem. Não mais.
Meses somaram anos. Esquecimento, esquecimento e contato esporádico, na freqüência, talvez, de uma vez ao ano. Até que ela sumiu. Até que ela apagou os contatos que tinha dele: a agenda do celular já não tem mais o seu nome. E, por mais que houvesse, ao acaso, ouvido saber dele em uma mesa de simpósio, nem sequer fez questão de ir assisti-lo, mesmo estando no mesmo local, disposta a ouvir as idéias de quem quer que fosse.
Uma estória finda; esteve sempre evidente que não teria sido mais que aquilo. Mas, apesar de às vezes lembrar dele, sempre que vê alguém vestindo uma camisa social de cor branca, ela atravessou a finitude portanto obstinação e tranqüilidade. Não seria nada além, nunca. Não poderia ter sido, porque ninguém nem esteve pensando em alguma transgressão naqueles contatos furtivos. Talvez tenha sido exatamente o que tinha que ser - aquele grau morno, escala pressupondo finitude evidente e compreensível.
Um dia, porém, o passado requisitou-se. Era descompromisso de fim de noite, quando ela descobriu um diálogo - ele estava fora do país, mandava notícias, mesmo ela tendo se desfeito dos seus contatos. Algo de distinto - nela, não nele - transformou de maneira decisiva o clima da ligeira reaproximação, abrindo uma sinceridade de alguém que renascera, que havia recolhido todos os cacos mais perigosos e elevado uma figura mais estável.
Ele estranhou - era mesmo ela, com aquelas considerações? Ela riu-se, descontraidamente dizendo que sim. Era ela, porém o tempo. Logicamente, ela não citou - porque há elementos que não são da natureza do citar - o que houvera operado aquela sua espontaneidade, e aquela falta de vergonha em insinuar querer retomá-lo, ele e sua beleza, quem sabe para uma conversa sem compromissos, uma tarde dessas, no Centro do Rio.
Surpreendeu-se. Ambos. Na pior das hipóteses, ele lamentaria tamanha falta de inibição, e a morte da antiga timidez. Mas, ela nada tinha a perder. Então o fato ocorreu ao revés; ele tomou-se de animação, e estabeleceram uma sintonia para futuras aproximações.
Jogo de dados da divindade, ou acasos costurados do Destino. Não havia uma semana desde que ela comentara de si para si que desejaria enviar a ele uma mensagem de fim de ano, mesmo com tamanha distância, mesmo sem cogitar que ele não estava no país. Atropelada pelo suposto passado fechado - quando, já lera, tudo coexiste, nada está magnetizado em cronologia humana.
Ao final, ele confessou em uma frase ter acreditado no esgotamento de ambos, juntos. Ela nada disse. Fingiu não ter percebido. Porque ela sabe como ele se movimenta; o que, ao contrário de tantas outras mulheres, lhe gera extrema atração e curiosidade. Ele voa. Então, ela manteve o fingimento de não ter percebido, e ele, teve de despedir-se.
Desejou, antes de dizer-lhe "boa noite", confessar que nunca pensou sobre aquele esgotamento passional, fadados ambos, ao que parecia, a compartilhar de uma insossa amizade posterior. Na verdade, jamais pensou com relativa preocupação nas partes que o envolvia em sua vida. E, também por isso, ele nunca lhe deixou sensação de peso. Ela apenas o quis esquecer, deletar o número do telefone, para, enfim, sentir-se livre para novas experiências que não envolvessem poesia, filosofia e cenas perdidas de filme pago. Nada além, nenhuma rusga.
Nada além; todas as mudanças. A operação dolorida que não cessa. Ao final de tudo, ele ainda mais longe já tendo se despedido; e ela quis gargalhar, pensando que a vida lhe pregara uma peça fantástica - está admirada, adorando. Que todas as estórias reacendem, e o que ela demorou a compreender na página de um romance de Hermann Hesse, tem sido alardeado diariamente na sua rotina.
Após a gargalhada, veio a confissão velada ao Outro - mas não dita, apenas pensada. Pensou em como o Outro, quase um hipertexto quando veste uma blusa social de cor branca, impulsionou o espanto alheio. O Outro que, não importa como, inunda. Pois é de paz; de sossego e liberdade que hão de ser os dias... E, quem sabe, também de retorno ao país, de uma tarde novamente sensível, em algum Café no Centro do Rio. Um dia.

dezembro 26, 2008

Vestindo

Colocou um vestido em pleno dia de chuva. Diriam que era chuva de verão - e então estava justificada escolha pelo vestido. Espera pelo sol no fim da tarde, talvez. Prenúncio almejado de sol para o outro dia, cigarra que vai cantando, asfalto esquentando e exalando uma tormenta quente, baratas subindo pelos bueiros, e estrelas despontando no alto céu claro da estação quente. Sim - estava justificado ter saído de vestido em plena chuva. Era chuva de verão. Mãe, é chuva de verão. Pai, é chuva de verão. Amigos, é chuva de verão. Amor, verão. (Pois que é preciso justificar...)
Cada passo contornando uma das gotas debruçadas. Há mais liberdade nas pernas, na diposição. É uma ousadia doutrinar o cinza céu com a roupa que se recolhe no armário. É uma obrigação que a chuva seja passageira, como sempre é, quando vestimos um vestido e há um temporal declarado pelo lado de fora.
É reflexo, daqueles que em dias exatamente assim, chuvosos, quando visitados ligeiramente pelo sol, terminam em arco-íris. Reflexo. Água atravessada por matizes, espectros de luz, possibilidades e apelo firme por coloração, mesmo quando há água gelada correndo pela pele e alardeando rumor de frio.
- Sinto frio, e coloco um vestido. Porque espero o reflexo, os tons coloridos surgindo ao longe, por mais inatingíveis que sejam sempre - alguém já conseguiu tocar um arco-íris?
- Sinto frio, e coloco o vestido. Eu vou dançando como se andasse, ouvindo a música dos meus sonhos, porque eu imagino que você um dia regressa da forma como eu sempre planejei para mim.
- Sinto frio, e coloco vestido.
Está chovendo e eu sinto frio, e eu quero estar exposta à água e à lama também, calcei sandálias rasteiras, saí com os cabelos desgrenhados, eu supus poder encontrar uma sombra naquela esquina, eu queria encontrar a sombra da minha esquina, eu quis.
Sinto muito, mas eu finjo, eu fujo e me arrepio, me arrependo, e coloco um vestido no dia de chuva, esperando que o sabor da nicotina não tenha sido fruto de um espectro de fumaça, aquela lembrança do sabor, aquele estranha presença, eu coloco um vestido fino e está cinza, úmido e ameaçador do lado de fora - mas eu finjo.
Acordei sozinha pela madrugada. Talvez eu sonhasse com o sabor; porque o que faço, senão sonhar?
Virei para o lado, voltei a dormir. Acordei para sair pela chuva. Porque, o que faço, senão sonhar?

Eu sinto saudades do que não é eterno, e talvez por isso eu consiga sentir saudades. Debruçou-se em meus braços um e dois e três, e todos não são o meu sonho, porque para o meu sonho eu me visto, coloco um vestido, lembro do sabor, fumo um mesmo cigarro, e para eles, o um, o dois o três, os muitos, eu não me visto, na verdade, eu tiro o vestido, para esquecer o sabor, para desapego completo, para esquecer, esquecer, esquecer...
Era uma noite quando eu estive, em pensamento, ao seu lado.
É todo dia que eu escrevo, em pensamento, a mesma ladainha marcante.
E o sabor nem merece.
Então eu olho toda essa chuva, toda essa água e vejo: é verão! Justifico, para não levantar suspeitas. E minto rigorosamente, para conservar a decepção. Coloco vestido em dia de chuva, falo na terceira pessoa, eu sou outra e procuro toda espécie de sabores, porque eu tenho grudado o sabor, e eu lembro com pesar que, talvez, tenha sido a última vez.
Coloco o vestido em plena tempestade.

dezembro 21, 2008

Sobre o estar

Terça – feira, 14:26, sala, cheiro de almoço fazendo. Uma mulher e seu casulo.

A foto estava prestes a falar, e eu que observava estava quase chorando. A foto me surpreendia e me amedrontava aos poucos. Era torturante estar ali de pé fotografando aquela imagem, mas revê-la me fazia um estranho bem. Ela me olhava tão profundamente que quase me subtraia. E eu não queria olhar, mas os olhos de mar me puxavam e me colocavam na tempestade. Tempestade da qual eu fugia tanto. E era tanto medo que eu quase chorava...tão viva! Os olhos lhe saltavam, e saltava mais que o olhar, saltavam sentimentos e passado. Saltava a realidade e aquilo tudo de que eu tinha tanto medo. Mas a imagem também tinha medo. Aquele medo antigo, medo do mundo. Medo que os olhos não escondem. Os olhos tristes me diziam coisas que eu não queria ouvir, por isso esquecia a foto num canto. Mas, contrariando minhas mentiras, naquele canto a foto era verdade. A foto respirava e era frágil. Tão frágil que me dava medo, e eu quase chorava.

dezembro 13, 2008

She touched my arm and smiled

Como é que cede ao ódio? Não a primeira vez que penso nas maneiras várias de acabar com sua vida.
Não me beija, nunca mais.
Volta correndo para mim.

(Crise de riso, misto de melancolia e choro.)

Nossos diálogos cada vez menos,
menos.

Você não respeita.
Me beija, mais.
Vai correndo, não volta para mim.


- Vem, eu preciso. Volta.


Ziguezague, labirinto, vertigem.

(O que sinto, explode.
- Te odeio, amor.)

dezembro 06, 2008

Como um aborto espontâneo. É essa a lamentação. Uma criança mal gerada, sofrida, adoecida, e que teve de escapar; não podia vingar.
Eu não acredito em Destino. Eu não acredito em determinações. Eu acredito em encontro, em serenidade mesmo no ímpeto mais forte - e deixar que os frutos amadureçam ao seu tempo.
O que fere mais talvez nem seja o fato da morte precoce; o que atinge a dor é a sensação de uma perda sem necessidade, de uma fração de vida que poderia ter brilhado, caso não houvesse tanta especulação, tanto esquema.

novembro 19, 2008

Agora

A disponibilidade cansa. Às vezes - e também por isso -, eu me visto. A maquiagem não varia, e as mentiras se repetem sem que eu perceba.
A disponibilidade de caminhar e olhar para dia.
A minha disponibilidade também, eu que estou aí alardeando que consegui, agora que assumo, agora que estou - talvez pela primeira vez - cuidando de uma das verdades dos meus sentidos. Mas é tão cansativo; é tão expositivo. Dizer que quer; esperar, sonhar, desejar e, por fim, encostar. Mastiga energia. É uma revolução tamanha abrir os braços e abraçar a própria sorte. Eu quase sofro de medo. Mas como medo é covardia, reavalio as minhas estórias.
Porque antes era uma palavra talhada à moda de medo o que prendia as ações, encurtava a juventude e perturbava a respiração. Depois, chegou algo como que uma inconseqüência na vontade e nas declarações - um desejo de cansaço.

***
Eu tenho pressa. Eu ultrapasso qualquer um, até você, quando assumo o medo e procuro transgredi-lo. Eu tenho pressa de vida, porque me afogo constantemente duarnte meses, e a minha rotina é toda tentar renascer - dia sim, dia não -, voltar, colocar a cabeça para fora da água e respirar.

***
Eu tenho pressa e ultimamente estou correndo. De braço em braço, em segredo, com a ligeireza de quem não está em busca de algo final; mas em busca da busca de estar gerúndio, sentindo e percebendo o que é tocar a vida, estar entre pessoas.

***
Eu tenho a pressa de misturar, embaralhar, provar simultaneamente e diferentemente as pessoas. A pressa que me põe a correr, sem fôlego, experimentando, porque a vida tem que ser sentida, e eu não posso mais me prender no medo - só nos fios do cabelo. A minha pressa hoje não tropeça, ela segue, esbarra, culmina às vezes no meu passado; mas tudo é reformulado, a minha sensação vira outra jamais imaginada, e eu rio como uma criança de fronte de um palhaço - a agonia transfigurada. Eu tenho pressa e não vou esperar, eu quero agora, eu preciso que seja presente.

***
A minha paralisia é um prelúdio cínico dos meus anseios internos. Dê a mim um tempo que eu possa manipular, e eu acelero e tomo parte do mundo. A minha paralisia é falsidade; porque eu tenho pressa constante interna eterna (e escondo), estou indo ao encontro e doida para bater, para me chocar, para estraçalhar no encontro, sentir todos os prazeres, todas as dores, todas as doçuras e todas as torturas. E ter, por fim, a satisfação de sentir meu corpo quebrado em milhares de fragmentos, a ponto de poder reconstituir tudo novamente, uma vez mais.

***

Eu quero agora, a espera dói. E a minha condição é violência.

novembro 15, 2008

(...) Com o corpo, porém, hoje espero tudo. Mas com o corpo eu sempre esperei; portanto, a exclusividade não é sua. Apesar disso, o fragmento de afeto reacende uma vez e outra, e canta vagarosamente além do corpo. Diz que há mais, e este é o perigo. Muito do sofrimento de não reter reside exatamente aí. Porque, quando tratamos só do corpo, há facilidades do desapego que justificam descuidar, procurar só quando sentir desejo e, ao contrário, não envolver com veludo de dedos as horas do seu dia. Contudo, agora começo a guardar os fragmentos de carinho. Às vezes, o rebuliço da maré os trazem à tona, mostrando o quanto eles existem, o quanto são possíveis apesar de toda a mentira dos meus disfarces. Em outras ocasiões, com o esforço de fingir, os fragmentos de carinho afundam - perco de vista a ameaça. Então, sobra apenas corpo e a sua linguagem. Há uma potência de assombro que me cala diante dessa constatação de haver afeto e haver mentira. Chego a não esperar nada racionalmente. Porém o corpo. Este espera um impacto, ainda remoto na idéia, mas dolorido a cada aproximação e fuga das minhas palavras.
Um dia, será pela voz a queda do vestido.

julho 26, 2008

Neblina.

Como lhe dizer - senão no meu silêncio -, que foi o quadro mais delicado que já vi de perto, e que de tão interessante que é, causou-me enjôo, náusea e um desânimo desatrado? É a pergunta que sorgue-se sobre o vazio da linguagem. Eu não lhe disse, porque não posso. Respeito. Há uma via conjugada em par, diria Guimarães: parmente; ao passo que há o impar - eu - que colhe os desastres e o brilho dos olhos alheio, a sutileza daquele sorriso que fazia revolucionar todo o corpo e lhe conferia uma dimensão tão maior. Poderia fazê-la para sempre dimensão, e viver disso, viver para isso - esperar eternamente que eu seja coberta pela sombra, pela estranha submissão que aquela presença me confere, submissão na qual me sinto confortável: ser escrava.
Medir sua presença pelo espaço que vai ocupando em cada frase, na forma como desdobra os assuntos que poderiam ser os mais tediosos - esta seria uma boa lembrança de guardar. Eu teria para sempre o seu tamanho. Tamanho. Mas há quem reprove guardar de maneira tão distorcida uma imagem e uma vida, e eu concordo. Porque não é dimensão, mas o corpo a alma a vida. É toda aquela pessoa à minha frente, e eu ainda estando lá. Cada mínimo detalhe que disfarço; estar observando e registrando em retina, em memória, em pele. Estamos. E os verbos nunca foram tão solitários. Quero conjugar perfeitamente. Imparmente. Estou realmente sozinha, e isso também me traz náusea. Eu estou. Só eu. Apenas eu. Só. O maior silêncio, porque nascido no encontro por-mim. Na busca que faço, no quase encontrar: a dimensão - mas não pode ser assim. Há você. Segunda pessoa, tu. Abandona da distância. Falarei diretamente o que a minha vida cala diariamente. A minha grande sorte ainda era ter onde, e como, dissumular tudo o que fazia, secretamente, para você. As manifestações que me causava, e cada freqüência disparada por ti ao passar ao meu lado, tudo isso eu subverti em algumas linhas, e novas personagens, incorências, loucuras e devaneios, péssima literatura e muito sentimentalismo. Porque é isso. É se perder, está aí para quem quiser ler. E ver. Está aqui, em cada linha que segue se perdendo, bifurcada em labirinto, na construção equivocada, porque assim é também na vida e na forma como você vai aparecendo, esboroada e firme, tristemente essencial. Também sem saber o que se passa, releitura torta que a minha rotina imprime nos fatos. Eu te tomo para mim. Meu silêncio e solidão te tomam e te fazem minha, o que é a mais curiosa de todas as experiências. Perco subjetividade e sexo, perco tudo, porque estou no emaranhado, no nó, na confusão de já ter representado todas as possibilidades e sempre ter terminado no ímpar. Imparmente.
Mas isso é devaneio e silêncio. Isso não existe..., porque não pode.