maio 18, 2005

Crônica de um monólogo a dois

Crônica de um monólogo a dois

-Alô.
-Alô.
-Poderia falar com a Ana?
-É ela...Quem fala?
-Oi, Ana!É o André, lembra de mim?
-Lem...
-Nós estudamos juntos no segundo grau, quanto tempo?!
-É, nós...
-Achei por um minuto que você não fosse lembrar.Mas, que ótimo que lembrou!Sinto saudades suas, das nossas conversas.Ah, os nossos papos!Bons tempos aqueles.Acho que faz uns três anos que não nos falamos.Como você está?
-Eu estou bem, e v...
-Eu estou muito bem agora.Mas, havia passado por alguns apertos financeiros e psicológicos.Tudo começou quando o marido da minha mãe arrumou outra.Os ânimos estavam calmos até ela descobrir tudo.A velha ficou louca de raiva e resolveu pedir o divorcio.Fomos morar em outro lugar e ela passou a pagar as contas sozinha.Acontece que o dinheiro que ela recebia de salário não era o bastante para suprir as despesas, sobrou para mim, né?!Tive que pegar no pesado.Fui trabalhar com o tio Oscar, aquele da pinta no nariz.Ele me colocou na labuta diária da oficina, lugar onde eu em meio a latarias e graxas ainda tinha que ouvir as reclamações rabugentas do sargentão irmão da minha mãe.
-Hum!
-Ah, sim!Você deve estar se perguntando “e os problemas psicológicos?”.Pois então, como se não me bastasse tudo isso meu pai resolve aparecer vindo do nada depois de dezoito anos.Minha cabeça ferveu como deve estar imaginando.
-I-ma-gi-nan-do?...Claro.
-Foi terrível, mas já passou.Tudo passa, não é?Agora posso respirar aliviado.Mamãe teve o salário aumentado após uma promoção.Sendo assim, larguei aquele emprego fétido.Comecei a estudar seriamente e passei finalmente, depois de dois anos tentando, para Administração.Não é legal?
-S...
-Ainda por cima o papai sumido começou a me pagar uma mesada.Mamãe acha que ele só faz isso para “posar de bom moço”.E quem liga?O importante é que está me fazendo muito bem esse dinheiro.Agora eu acho o mundo muito mais bonito!...E você, como vai a faculdade?
-Eu passei para...
-Sim!Geografia, o Rafa me contou.Não acho que seja a melhor profissão a ser seguida por você.O seu perfil combina muito mais com Informática.Se bem que não era o seu hobbie mexer no computador, era?
-Bom, realmente...
-De qualquer jeito tudo tranqüilo.Um dia você encontra seu caminho como eu encontrei o meu.Sabe às vezes me sinto ímpar em relação aos outros seres humanos...E seu irmão como está?
-O Bruno casou com a....
-Laiz.Eu sei encontrei com eles outro dia.Casal prosaico, não?Tomara que essa união de certo, com tantos desquites onde vamos parar?!...Mas Ana, fala alguma coisa você está tão calada!
-Haha!Claro, calada?!
-Fale-me sobre a vida.
-Eu ando fazendo uns cursos e continuo tentando programar aquela viagem...
-Ana desculpa te interromper querida, é que preciso desligar.Sou um homem atarefado agora.Mas de qualquer forma foi muito bom conversar com você e principalmente ouvir sua voz.Até uma próxima.Beijos.Tchau
...
(Priscila Coli)

maio 16, 2005

onde até o inferno é doce

Onde até o inferno é doce

Não contava receber diretamente do inferno um telegrama com um acordo pré-nupcial – o assunto vinha escrito na frente do envelope. Estaria ele morto? (Dentro de seu raciocínio somente os mortos tinham acesso credenciado ao inferno, podendo entrar e sair de lá a hora que bem entendessem.) Ou vivo? (Inferno pode ser modo de dizer. Se alguém, por acaso, esqueceu de empregar o diminutivo nesse substantivo abrasado, certamente este inferno era aquele outro, aquele das putas e das bebidas.) Ou estaria ele – pior! – morto em vida? Vivo em morto? Demasiadas explicações sobre o estado da matéria humana para que aceitasse ser o receptor do telegrama infernal.

Um telegrama vindo diretamente do inferno, mas que diabos (!) seria aquilo? E que história absurda era aquela de “pré-nupcial”? Quanta bobagem, meu deus – com o perdão do uso. Quanta bobagem!

Foi que dali, do local onde foi atingido pelo remetente do Cão, resolveu ir sentar os pensamentos na poltrona mais próxima, ainda com as articulações do raciocínio bambas. Se alguém quis mexer com o homem, atiçá-lo de alguma forma, conseguiu com êxito. Com o envelope ainda lacrado, ele lançou no mundo um suspirou um pouco trêmulo. Ele suava a sua curiosidade e engolia, na saliva seca, todo o seu receio.

Pra quê tanto medo, se era batizado em três religiões e só levantava da cama depois de se benzer três vezes? (Três era número de sorte; tudo o que ele fazia tinha esse ímpar no meio.) Logo respirou fundo, contou até três e deu três estaladas de dedo antes de verificar o conteúdo do telegrama. A coragem do homem o saudou.

Telegrama aberto. Pés delicados sobre um salto alto. Tornozelo – ele adorava tornozelos! Pernas bem torneadas. Uma saia... uma pequena saia. Pelos longos e negros cabelos ele logo pôde perceber: era Maria Luiza que atravessava a rua calmamente, sem sequer notar que ele estava no carro esperando o sinal vermelho ficar verde. Era ele, recebendo telegramas daquele sujeitinho que aposta na difundida afirmação de que a carne é fraca.

Ora veja que astúcia! Enviar um telegrama assim em forma de mulher, em pleno trânsito, e ainda explicitar que o conteúdo era pré-nupcial. Logo ele que não queria núpcias coisa nenhuma. Se bem que Maria Luiza... essa era pra casar e fazer tudo bem direitinho.

Maria Luiza foi passando devagar em forma de mensagem escrita: ela era as letras do telegrama; era, ao mesmo tempo, o significado da mensagem e a forma como a mesma se manifestava. Ela era tudo. Maria Luiza foi passando devagar... até que passou.

Telegrama lido, queimou feito a brasa enviada pelo remetente danado. Ele não estava morto – imagina se um morto ia sentir tudo aquilo que ele sentia ao ver a bela moça desfilar na passarela de asfalto? Também não estava vivo: como dizer-se vivo sem ter nos braços aquela doce amada? (Romantismos também afloram no ápice do amor carnal.) Estava ele morto em vida? Ou vivo em morto? Não, forte demais! Ele estava, apenas, um pouco apaixonando.

maio 06, 2005

Transparências e molduras

Transparências e molduras

Mandei encomendar cortinas novas, meio bordadas e com alguns babados. Alguns diriam que era exagero meu, chamariam minha preocupação de desnecessária. Mas, desde a primeira vez que eu vi aquelas janelas, ouvi seus apelos estéticos pedindo que eu lhes encomendasse cortinas novas e lindas, que esvoaçassem ao entardecer.

A minha preocupação em vestir a entrada de luz da sala ocupou alguns dos meus dias. Saí em busca do melhor tecido, a melhor qualidade, a melhor aparência. Não havia preço que desanimasse a minha busca: quanto mais caro, maiores seriam as chances de encontrar o tecido ideal. Pagando um alto preço eu também teria minha preocupação expressa em capital e eu ficaria satisfeita.

Depois de percorrer quase toda a cidade, encontrei um tecido lindo e comprei-o de imediato. A necessidade seguinte era a de achar, então, uma costureira brilhante.

Observei anúncios em jornais, placas penduradas em portões das casas simples. Observei o boca-a-boca das vizinhas, as experiências de minha mãe, as indicações de algumas amigas. Analisei cada indicação, me preocupando em encontrar mais que uma ótima costureira: um local agradável onde meu tecido ganharia vida. Os metros de pano não poderiam ser tratados com descaso, muito menos pernoitar em um ambiente pouco aconchegante. A costureira deveria ter um ateliê especial.

Após alguns dias de buscas encontrei enfim Janaína, uma costureira simpática e velha que me foi apresentada por intermédio de toalhas de mesa bordadas com todo o capricho na casa de uma amiga minha. Janaína sorriu espontaneamente nos primeiros cinco minutos de conversa que tivemos. Essa era prova final de que eu tinha encontrado a melhor costureira para fazer as minhas cortinas.

Tive que esperar alguns dias para que a encomenda ficasse pronta. Eu sempre fazia questão de recordar as instruções que Janaína havia recebido: os bordados, os babados e as sobras de tecido que deveriam ser entregues a mim, afinal de contas, aquilo havia me valido muito.

Durante esses dias de espera não pude evitar minha atitude ansiosa de retirar as antigas cortinas, fazendo com que as janelas pressentissem o futuro próximo de suas roupagens. As cortinas velhas estavam tão desgastadas! A velhice que pendia dos tecidos já finos indicavam de leve o tempo que eu havia ficado privada de olhar pela janela. Os tecidos empoeirados aguçavam minha alergia, que não era física: tinha uma procedência distante, não era palpável. Era um pouco abstrata.

As cortinas velhas nas mãos! Tão velhas pelo uso, desgastadas ao extremo. Não conseguia me lembrar de tê-las removido da frente da janela por completo em algum dia. Dobrei-as com carinho e coloquei-as dentro de um saco. Já não mais me serviam como antes. Era hora de jogá-las fora.

Era pitoresca a vista da janela nua numa mescla dos meus anseios em vê-las cobertas. Eu podia ver o caimento do tecido bordado e com alguns babados, pendendo uma beleza elementar desde o teto até quase o chão. E quando o vento da tarde batesse, elas se moveriam como se fossem um vestido de seda leve, me trazendo algum tipo de atmosfera lúdica e inebriante. Em contraposição a essa imagem ansiosa, eu via em minha frente a linearidade do concreto que era a janela desnuda. Tão incômoda! Retangular, seca e parecendo um quadro vivo, uma pintura em movimento sem graça: pessoas apressadas andando na avenida, carros e ar poluído circulando pelo asfalto.

Passaram-se uns quinze dias de janelas transparentes até que as novas cortinas ficaram prontas. Eu estava ansiosa para ver o resultado. Logo fui buscá-las para fazer a prova em casa.

Janaína me recebeu simpática como da primeira vez. Eu lhe entreguei a remuneração e ela, as cortinas. Disse que se esforçou para fazer o melhor trabalho e eu acreditei. Fui correndo para a casa, subi as escadas do prédio onde morava esbaforida. Adentrei a sala, tirei as cortinas da embalagem que Janaína havia as embrulhado e as estendi no chão.

Como eram lindas as cortinas! Muito mais belas que na minha imaginação amadora. Perfeitas, delicadas, caprichadas. Eram cheias de detalhes que só uma observação detalhada permitiriam captar toda a graça da costura e do tecido.

Elas ficaram algum tempo estendidas pelo chão. Meu pensamento vacilava. Os quinze dias de espera com as janelas nuas me fizeram acostumar com a pintura sem graça dos dias. Cobrir aquele quadro do qual eu também fazia parte soava-me de forma bastante incômoda, porém inexplicável. Inexplicável. Talvez eu não quisesse mais ser uma personagem lúdica.

Passadas algumas horas, reconheci que todo o esforço para conseguir as melhores cortinas teria sido em vão caso eu não as usasse. Por isso tratei de as pendurar com toda a dedicação e fiquei encantada com o resultado final. Lindas. A sala parecia um palacete particular.

Por fim, para atenuar meu incômodo, não fiz como anteriormente fazia e abri as cortinas ao máximo, deixando que o quadro em movimento ficasse bastante visível.

As cortinas devem ser só um detalhe, pensei. As cortinas devem ser a moldura do quadro em movimento.