novembro 27, 2004

Ares suburbanos

Ares suburbanos

O subúrbio é quente porém preciso em sua imprecisão. As casas vazias de glamour, as casas-moradia, passam a impressão de que são abafadas sempre. Mal ventiladas. Talvez nem seja pela construção de humilde alvenaria mas pelo fato de não ventar por essas regiões periféricas.
Vejo o caminho do trem, aqueles ferros gastos e reluzentes, especialmente dilatados pelo sol a pino. Confundo os ambulantes de muambas com as pedrinhas que vivem pelo caminho do trem, tão miúdas que mal as vejo. É tudo muito pálido, numa rápida visão, mas há o brilho do lirismo nessas ruas sem charme.
Inúmeras crianças suadas brincam descalças, pés no asfalto quente, pés na calçada de pedra, pés no paralelepípedo cansado. Ouço o suspiro pesado dos paralelepípedos. São senhores tão senhores que, ao cumprimentá-los, coloco-os na posição de anciãos. Por isso não cumprimento asfalto; são uns moleques, ainda.
Na fiação das ruas sempre há uma pipa de cores desgastadas. Ou um par de tênis. A energia ali transmitida chega às casas e acende suas luzes.
À noite é possível encontrar nas esquinas churrasquinho por um real. Cerveja também, por um bom preço. A diversão não é cobrada. O bem estar de se sentir vivo, sem o asco burguês, isso é de graça. É acompanhamento.
Intimamente tudo isso me é necessário. Momentaneamente, naquele instante discreto a que se convencionou chamar fração de segundo, me encontro despido de preconceitos e de tolos conceitos. Encher o pulmão de ar quente, sonoro, humano; sinto certo prazer nisso. Receio, portanto, que esse prazer seja fruto de uma necessidade de me afirmar superior. Seria prazer maculado como o das primeiras descobertas. Mas ainda assim, fazendo jus à minha comparação anterior, seria prazer genuíno.
Costumo me sentar numa mesma padaria, sempre. Os galetos são até apetitosos, giram sem parar e atraem cães moribundos, vira-latas ébrios de fome. Me sinto como se fosse parte da paisagem que fotografo e isso me deixa secretamente satisfeito. E vem sempre o atendente moço, a má vontade característica acentuada pelo suor na face oleosa. Não há uniforme ou cardápio. A especialidade do bar da padaria, onde me encontro sentado, fica escrita em uma lousa verde-escuro, à giz. Mas nunca como nada, a não ser imagens. Peço apenas cerveja antes do calor me consumir.
Ali, exatamente ali naquela moldura simples, eu não tenho nome. Não tenho sequer um paradeiro. Para aqueles que adentram a padaria eu sou um pouco de tudo. Quem sabe um vagabundo? Um bêbado? Talvez um cansado trabalhador após seu expediente. Ou ainda um pai que fora ali comprar pão e aproveitara para dar uma descontraída. Tem até quem me cumprimente!
Sou tantos, pelos olhares posso sentir. E o gozo de poder ser infinitamente eu, eu que finjo ser um só, sou involuntariamente subtraído de mim mesmo. A conta nunca é exata, há sempre um resto orgânico que concebe novamente uma figura minha. Uma de minhas faces, um desses disfarces que mal percebo. É um prazer vicioso, uma alucinação positiva que me faz sempre querer voltar.
E volto. Volto porque sinto falta.
Antes de sentir saudades o que sinto é falta: é como se tivesse em mim uma parte vaga, um órgão oco, uma lacuna, vácuo na artéria aorta. Não há pesares nem lembranças, há apenas a necessidade do preenchimento que normalmente não tenho. (Talvez, se tivesse ainda que empregar a palavra saudade, pudesse dizer que acabo por sentir saudades de mim, em meio a toda falta que me lateja.)
Como uma folha em branco, porém com meu nome assinado, sou carregado sarjeta a fora pelo vento que nunca sopra pelas regiões suburbanas tão longínquas a mim. E lá vou eu para poder, um dia desses, voltar.

novembro 21, 2004

Lacônica

Tive uma idéia {olhos atentos}.Tão calada e tão tímida que nem eu mesma pude escutar.Paulinho da Viola pediria a pausa dos tais mil compassos.Eu {sorrisos de canto de boca}.Infâmia.Peço porém, um grito de mil almas{sibilos}...eu sei...Conheço as reações.O ranger de dentes que me observa a se decepcionar{rugas em testas estranhas}.E é por já ser sabida a reprovação que opto por não me abalar.Por viver sem me importar.Me morrendo a cada dia.Renascendo esquerda e torta{cruzam-se pernas inquietas}.Serei portanto uma quase pedra?Uma semi-árvore?...Tentando ser esse nada consigo ser apenas eu{gradação}.Remendada.Solta.Apenas.Somente.Eu{ahhh...clímax!}.

Sem melancolia, agora convincente e forte, peço que gritem as almas sonoramente contidas.Desafinadas.Pois se o silêncio me devora vetando as palavras, no barulho me encontro, me reconheço e vivo{sretytyujhhxnxksmssss}.

Priscila Coli

Amantes bem dosados

Amantes bem dosados

Uma colherada. A colher que afunda no conteúdo cremoso, sabor delicado de mel. É iogurte. A colher adentra a boca com a fúria de quem tem fome. E sai sutil e lenta, vazia. Tudo num ritmo desnecessário. Um desespero que deixa os lábios sujos com resquícios do derivado lácteo.
O telefone chama uma vez. Duas. Só atende na terceira, misticismo. Pega o telefone móvel e se dirige à porta de vidro da varanda. A chamada é à cobrar. Enquanto espera a mensagem da companhia telefônica observa seu reflexo no vidro. A boca está suja de iogurte. Parece estar engordando. Não devia chegar à varanda só de blusa e calcinha, era feio, seria vista.
- Alô? [...] É engano.
O telefone é graciosamente arremessado no sofá. A vista que tem da varanda é quase um auto-retrato. O mar arredio e um céu cinza, barulhento.
A solidão dá vontade de tomar um banho quente. Dirige-se até o quarto e liga a tv que passa o noticiário do fim da tarde. Nada daquilo interessa. Deixa num volume baixo e entra na suíte. Tomaria banho de porta aberta para ouvir a agenda cultural que seria dada em instantes.
Despe-se e liga o chuveiro. A suíte se enche de vapor, o espelho se torna mais agradável. No fundo a tv fala supérfluos. A água quente deixa o corpo mole, dá vontade de dormir. Mas passa.
Se fosse ontem. Ah, se fosse ontem! Tudo seria diferente. Em um dia o quebra-cabeça foi manipulado e nada mais se encaixava. Era a hora de ouvir o barulho das chaves na porta e perceber a maçaneta que girava. O som da pasta que repousava sobre a mesa de tampo de vidro. Os passos até o quarto, onde ela tomava banho, a gravata sobre a cadeira, os sapatos sendo guardados. Tudo em um silêncio detalhado que agora calava o ambiente de forma assustadora. Somente o som da tv.
Mas não deveria sentir saudades, nem falta. Os vínculos eram fracos e não deveria sequer amá-lo. Não deveria, pensava assim, porque podia escolher. Tinha esse tipo de ilusão densa que podava sua insegurança natural.

O telefone chama. Uma. Duas. Três vezes, atende.
- Alô?
- Tudo bem se eu passar aí agora, meu bem?
- É engano.
Era ele.
Melhor pôr um fim por conta própria. Não queria escândalos mais tarde, problemas com esposa traída. E se engravidasse num desses descuidos? Não. Era melhor acabar com aquilo. Os vínculos eram ainda fracos.
O telefone é graciosamente arremessado no sofá. Tomaria um banho e esqueceria rapidamente dele. Vestiria uma nova peça de roupa. Tomaria nota da agenda cultural e sairia em busca de uma diversão. Quem sabe não encontraria uma boa companhia?
Ela manipulava seu próprio quebra-cabeça. Ou pensava que o fazia: dosava.

novembro 14, 2004

Declaração reprimida

Declaração reprimida

Eu te olho tão fixamente que. Respiro assim de forma. Leve, ouço seus passos quando. Acho que sinto sua presença. Acho que sinto arrepio. Acho que me dá uma moleza. Acho o que acho sempre.
Te desejo tão obliquamente que. Me envergonho só de pensar em. O que podem fazer de mim se? Talvez eu devesse tentar. Talvez eu pudesse tentar. Talvez eu pudesse gostar. Talvez eu duvidasse da dúvida.
Sua presença me incomoda de forma absurda. A simples questão. Estar sem possuir. Se fosse em casos passados eu interpretaria o meu papel de quem luta pelos ideais. Até pelos ideais do coração. E da cama. Mas agora é perigoso, diferente. Não sei se vale tanto à pena arriscar.
É um desejo diabólico, é tesão reprimido. É pensar naquela boca e se forçar para des-pensar. Não pensar que pensou. É olhar discretamente seu corpo, sexualmente igual ao meu, os mesmos órgãos. E quase não aceitar que sente atração pelo mesmo sexo.
À ponto de. Puxar você pelo braço para. Não falar. Olhar. Venho escondendo meu olhar há tempos para você não me perceber admirador. Tenho vivido assim sem. Trégua, por favor.
Quero. Você.
Também quer?

Postado por ^Bia^

Postado por ^Bia^
Por problemas técnicos ou alguma deficiência de memória eu acabei esquecendo minha senha e meu e-mail não tá colaborando pra eu poder receber minha senha TT_TT Mas a Prii muito boazinha me emprestou a conta dela pra eu poder postar!! oba!! valeu!! \o/ Bom, esse é mais um desenhinho aleatório. Espero que gostem apesar da pintura <-- preciso trabalhar mais nisso ^^'''
Beijos, ^Bia^

1º Ato

1º Ato

Holofotes no centro.A platéia minguante a nos observar.Tentei disfarçar a vontade quase fisiológica de gritar.O cujo pelo qual eu tanto esperei, havia se consumado a milésimos de segundo.Não houve tempo para refletir sobre as sensações exatas.Possuo apenas um aperto na garganta, uma dor perto do peito e um vazio no estômago.Estou com vontade de chorar, porém não esteja triste.Minha cabeça embrulha-se em um turbilhão de emoções.Como no avesso de um filme, as imagens exibem-se sem seqüência.Permanecem embaralhadas.Incontextualizadas.Ainda verossímeis demais para serem reais.
Nesse palco do anfiteatro, dias antes da estréia, nos beijamos recíproca e explicitamente.O desejado ósculo não ocorreu com técnica.Pronunciou-se de fato, transitivo, englobando sentimentos fora do script.Quebrando a impassibilidade do momento.A esfera de cacos que nos envolve agora torna os personagens únicos. Confusos e à flor da pele.Nossos lábios ainda trêmulos, os músculos contraídos.Permanecemos abraçados a fim de perpetuar a autoproteção.Hálitos ainda se misturam compreensivos.Vontades transparentes neutralizam as palavras.Sabemos que qualquer verso bucólico e tradutor trairá a singela cena.Momentânea e eternamente estáticos. Paradoxais...Recobro a lucidez e acabo por perceber que não lembro do texto.Afasto-me assustada de ti. Passos lentos. Olhar perdido. Mente confusa.Vejo no teu rosto a solução se concretizar. Corpo aflito.Suas lágrimas descem suaves.Choro cândido.Contentamentos puros a se desdobrar.O coração aberto conduziu teu pensamento.Guiou teu falar.A língua, a estalar no céu da boca, pronunciava leve a palavra AMAR.
Som de aplausos.Absortos e distantes.
Priscila Coli

novembro 06, 2004

Bianca

Bianca

Bianca, prazer. Nesses anos de relação eu esqueci de te apresentar. Essa Bianca que te imobiliza o físico e o espiritual. Que te prende entre as pernas e apóia parte do peso pondo as mãos em seus ombros. Pernas que não são minhas, nem suas. São de Bianca, apenas.
Bianca que te olha de cima. O prazer é todo meu. É nosso. Simultâneo, um espera pelo outro. E pronto. A Bianca se esvai como o seu líquido que se perde por dentro de mim, nessas nossas entranhas.
Deposita-se brevemente em meu corpo. Tomo todo o cuidado de impedir que frutifique. Aguardo que meu organismo cumpra o papel de recolher os seus pedacinhos que guardei comigo da noite anterior. Para que assim eu possa despertar no dia seguinte sem encontrar seus resquícios ao me olhar no espelho. Deixar oculta uma parte de mim. E viver de forma imoral.