outubro 30, 2004

Escarro

Escarro

Em cima do meu corpo se esfrega frígida, tua carne.Teus ossos machucam os meus, que ávidos de luxúria, não sentem a fúria.Tuas garras a me arranhar e os pêlos caninos a macular minha pele lívida.Sinto náuseas.Dor ejaculada.Sinto a mágoa que me excita.

Escarrei, não comedi.Gozei enfim o último soneto.”Com carinho e amor...” e meu nome assinado.Assino para que não duvides da procedência.Assino para que identifiques o teu frágil animal domesticável.

Gerei apenas um suspiro, lânguido e sofismático.Suspiro de fim.Ao olhar os olhos agonizantes que me observam sem me ver, percebo a satisfação da certeza de posse.Percebo que seremos em vão carne podre.Nos enterraremos em terra própria.Terra seca, de amores árida. Rachada por nossos gritos grotescos.

Respiro exausta, depois de ver naquele espelho de motel, não estrelas, mas dois trapos que se refestelaram com prazeres escusos.Nem trepando somos um casal.Não nos encontramos, não nos sentimos.Nos entregamos sempre a esses venenos solitários e viciosos.Formamos a anti-reciprocidade.Formamos a matéria inerte que insistem em chamar de enlace.
(Priscila Coli;25/10/04)

Uma rua e aquela paixão

Uma rua e aquela paixão

O chop gelado faz o copo suar no calor do Rio de Janeiro. Rua da Carioca. Sempre que passo por aqui os anos vividos se transformam em fatos que ainda me doem. As lojas de instrumentos musicais compõem a fotografia perfeita que trago comigo, desde a última vez em que estivemos juntos. Ainda paro em frente às lojas com a mesma cara idiota que hoje é refletida parcialmente pelo vidro das vitrines. Saxofones, saxes. Incrível como ainda me lembro de cada vibrante palavra sua comentando sobre a paixão que tinha por Stan Getz. Parece que foi ontem. O tempo não tem sido justo comigo.
O bar está cheio. Horário de rush no Bar Luís. Garçons se desdobrando e eu beliscando pedaços de melancolia quase crônica. Sozinho na mesa em que costumávamos sentar após as peças assistidas. Comentávamos deliciosamente. Chop amargo, amarguíssimo.
As imagens não se apagam e eu sempre me pego te olhando como da primeira vez. Jazz-band e você lá. Você lá. Sempre lá. Até que depois de decorar o repertório inteiro de um mês eu resolvi me aproximar. Se eu soubesse que seria tão bom não esperaria nem meia música para te abordar.
O Cine Íris me faz recordar brincadeiras. Um sorriso abafado pelas lembranças até se atreve em aparecer. Noites inspiradas, aquelas. Noites que jamais consegui repetir. Noites que não mais me são reais se comparando às minhas noites mornas em que divido minha angústia com a máquina de escrever.
Pensei que te encontraria aqui. Mas não. Ainda tenho coisas suas comigo e preciso devolvê-las. Alguns Cds e dois livros. A música dos dias vividos por nós precisa parar de tocar para mim. Já tentei arrancar suas páginas mas seu conteúdo permanece comigo.
A conta, por favor. Por hoje basta.

outubro 23, 2004

Vago enredo

Vago enredo

Foi num enlaçar frágil de mãos insertas que relembrei o meu passado.Importuno.Insignificante como a luz a entrar pela fresta da janela.Ilumina a cadeira em que sento e não a folha em que escrevo.

Como um tesouro que tem o mapa queimado e os cúmplices fantasmas, eu escondi minha estória.Intransitiva, fiz questão de apagá-la.Amnésia consentida.Desvario voluntário, porém, insipiente.Não poderia cortar da memória parte ainda latente, a qual sobreviveu feito um esporo durante anos.

A nostalgia voltara, com toda sua efusão de imagens e sensações.Triste momento em que suas mãos trouxeram à tona essa sombria realidade.Lágrimas raivosas, suspiros solitários.Um espectro doentio que já havia sumido.Ou talvez estivesse mascarado, escondido nos sorrisos amarelos que forjei durante todo esse tempo.Mentiras próprias, vadias.Pronunciavam-se a qualquer um que lhes desse migalhas de atenção. Ladainhas intrínsecas ditas repetidas vezes, agora me denunciam. Neste minuto, estampadas em minha face, me marcam como gado e voltam-se para o passado sem lirismos.Expõem verdades que corroem de dor meu ser.

Nesse simples afago de suas garras, hoje enrugadas, vejo torpe de desespero, que para tirar o calor das cicatrizes deixadas por elas teria que suicidar a mim.Quebrar a essência viciada, podar as daninhas da esperança que se fincaram na alma.Seria preciso evadir-me amoralmente parindo por náuseas mais uma capa oca, amarga e piedosa.Personagem sem papel, como este que agora jogo fora.
(Priscila Coli;17/10/04)

outubro 17, 2004

Bom apetite!

Pois quase se engasgou com a espinha do peixe. Como aquele moleque atrevido tinha a cara-de-pau de lhe falar em dinheiro à mesa? “Só preciso de uns dois tostões, mais nada”. Mais nada, tem certeza? Mas que idéia mais torta a desse guri, como se a quantidade que pediu lhe fosse pouca coisa.
Passado o susto e as caras hilariantes de uma família que fingia preocupação com seu estado, era hora do troco. Troco não, porque lembrava dinheiro e isso era algo que não tinha e nem queria ouvir falar. Ora essas. Filho é besta mesmo. Parece que não percebe o esforço de todo dia e, além de não perceber, acha que os pais sabem fazer multiplicar esse maldito papel-moeda.
- Somente dois tostões, meu filho?
Esperava, porque sempre esperava alguma coisa de alguém, que o filho, pelo menos, lhe respondesse positivamente. Deveria também olhar para o chão, numa atitude de reconhecimento de sua dependência econômica. Estava atrelado ao pai. Que bela criança. Dependia dele, sozinho nada era. Nada mesmo, viu?
- É, velho. E se o senhor pudesse me descolar uns trocadinhos a mais, só por via das dúvidas, pra não ter que ficar andando com dinheiro contado.... sabe como é, né? Acho que o senhor me entende.
Opa, mas que abuso! Moleque safado, ousou em quebrar a expectativa do bom pai de família. Ele, que deu o suor, a vida, os sonhos pelos filhos e que, agora, se sente como um cachorro manco. Desprezado. Sua figura se resumia ao dinheiro, era isso? O jeito é ensaiar o choro, estremecer a voz. Que tal? Vamos lá, o drama é necessário nessas horas. E as portas, então, se abrem para o discurso que leva tempo e o resto do apetite.
- Tá ok, velho. Tudo bem. Não precisa me arranjar os trocados, então. Eu me viro com os dois contos.

Oh menino sem vergonha. Ainda não entendeu que é o problema todo não é só o dinheiro. É burrrinho mesmo. Papai sempre achou que ele era esquisito, não gostava da matemática, nem da física. Ciências de gente inteligente. De homem de futuro. Ele gostava mesmo era de ler, falava numa tal literatura e vivia gastando dinheiro com essas bobagens.
Parecia que o moleque não percebia que o negócio era mostrar que, sem o pai, sem o esforço dele, sem sua boa vontade, sem seu dinheiro – é, inevitavelmente sem o dinheiro – ele não poderia. Rapaz, reconheça a dependência.
Mais atrevido era o pai, então. Vê se pode. Mas tudo bem, o que não se faz por interesse? Numa relação de troca vale tudo.
Olhar baixo, discurso de reconhecimento, exaltação e reverências ao super pai que ocupava a cabeceira da mesa. Os dois contos em mãos. Ah, aproveita e fica com esses trocados também, talvez seja necessário, quem sabe. Preocupação de cristal. Ou melhor: de porcelana barata.
E os domingos ainda são especialmente santos.

outubro 15, 2004

Relação a três

Relação a três

Eu, você e eu. Todo o seu tempo para mim. Seus ouvidos para ouvirem meus devaneios e declarações. E o resto do corpo para testemunhar a minha dependência.
Eu, você e eu. Sua vida para responder aos meus anseios e suas palavras para serem formuladas por mim. Seus atos seguindo rigorosamente meus roteiros. E suas reações para satisfazerem as minhas expectativas.
Nós e você. Meu servo, me servindo sempre. Me enfeitando ao agir de acordo com minhas doentes fixações. Sendo projeção daquilo que espero. E me atendendo durante todo o tempo em que estivermos juntos.
Você e nós. É só adotar um comportamento opaco para me esfacelar por completo.

outubro 14, 2004

Parcos questionamentos

Parcos questionamentos
Parado estas de fronte ao público.Quantas chagas a contar.Quantas ladainhas a cantar.De pedidos te enchem.Será que ouves?Quanto da vida sabes?Se é que existes.

De braços abertos, figura soberana, olhai por nós!Nós que te inventamos formulando a tua última criação.Nós que te pregamos, te rasgamos e matamos.Esses mesmos que inventaram o pecado, dizendo-se éticos, precisam agora do teu perdão.”Senhor, tem piedade de nós!”

Sentado em teu trono divinal, habitando teu parnaso, o que fazes que não lês nas mentes doentias o refrão sonoro que te clama?”Venha vós ao vosso reino!” Por que exilas teus filhos?Por que nunca és bom por completo?

Faz muito te vestiram um manto e de branco te pintaram.Se és igual a todos qual a causa de tal singularidade?Deixaste te moldarem ao seu bel prazer.Deixas que te invoquem por motivos ilícitos.Transformaram-te em pragmático e maniqueísta.Trabalham para tua riqueza e dispõem de tua fraqueza para comprar corações.

És um bom investimento. És um bom ganha-pão. És visto como santo e tratado como Adão.
(Priscila Coli,22/09/04)

outubro 10, 2004

Conceitos

Conceitos
Estou mole. Tenho estado mole. É essa cidade envolta de montanhas. Altas montanhas vestidas de verde e vestidas de gente. Gente pobre, vida podre. Outro dia ela manteve contato comigo. Sua face, a mais dolorosa. Doeu num estalo, foi como um tapa na minha cara. Cara de gente tola, que só desperta quando é atingida
A visão da linha do horizonte anda meio interrompida. Meio totalmente. Não tenho ido mais à praia para me encontrar com o infinito. Não sobra tempo. Meu infinito se esgota na contagem regressiva da vida. Às vezes tudo é tão chato que perde o sentido. É quando sinto um certo medo. A vida deve ter um sentido, sim? Até ontem, antes de falar com ela, eu achava que sim e que isso valia para todos.
Meu infinito tem sido o concreto que dista da zona litorânea. Concreto abstrato, que se revela aos meus olhos por ser fruto de uma combinação de átomos e moléculas que jamais serão vistas por mim. Pode surgir a mais avançada ciência, capaz de fazer uma leitura dessas estruturas atômicas. Não creio nelas.
Sem crises, sem lágrimas e sem dramas. Talvez eu pudesse me aposentar de mim. Mas me acho ainda muito jovem para isso, apesar de reconhecer que muitos na minha mesma idade já estão aposentados há muito tempo. Ou, quem sabe, talvez seja a hora de ver nas montanhas a linha do infinito da realidade brasileira.

outubro 02, 2004

Solidão luminosa

Solidão luminosa

Saía toda tarde melancólica para ver o por do sol.E o sol ,solitário, lhe fazia companhia.Despediam-se de um mundo com toda efusão de cores e entravam na sombra de suas vidas,no breu de suas sinas.Penumbra que mesmo com a promessa de um novo renascer, ressurgia igual ao anterior.

Imutavelmente ela olhava os arrebóis como se procurasse um sentido para aquilo.Sentido para sua própria existência contínua.Talvez tivesse mesmo o espírito solar, retorna todo dia para tentar modificar.Vê as tardes como fins de ano, onde há esperanças de novidades.Tenta encontrar uma maneira de evadir, sair de sua pseudovida-latente.

Tinha seu rosto pintado em moldura inexpressiva, porém seus olhos eram úmidos de subjetividade.Revelavam mais do que ela queria aparentar.Pensamentos vagos e tímidos.Frágeis convicções que se desfazem ao vento.Sábia Brisa!Segue levando consigo palavras sufocadas, gritos mudos.Frases inteiras formuladas durante séculos intimistas.Corajosas proposições internas que ao entrarem em contacto com o mundo externo se mascaram frustradas e desaparecem.

Compartilhavam do mesmo sentimento.Provocavam a mesma sensação.Insensibilidade.Os transeuntes sentiam suas presenças e as comentavam, mas não as compreendiam.Eles refletiam a mesmice.Clichês.Parcos, mas necessários clichês.

Ela permanecerá observando o crepúsculo por muito tempo.Sem nunca se alterar com a beleza do degradé formado.Parcimoniosa.Impessoal.Seu olhar continuará perdidamente expressando dúvidas implícitas.Um dia saberá que o que procura na luz parva desse astro simbólico é a expressão do seu próprio eu.A vontade de viver que ela deixou para trás.O presente do qual ela insiste em não querer participar.
Priscila Coli;27/09/04


Casal

Casal

Deu-me espinhos para pendurar no pescoço e pediu para que eu gracejasse com estes. Eu deveria andar harmoniosamente pelos pátios imundos da vida, como se estivesse a desfilar para uma multidão de faces sequiosas pela falha, um mosaico de gente, que goza com as críticas que faz. Recomendou que eu mastigasse os dias de fel, sempre sorrindo, imaginando que aquela pasta rançosa e amarga fosse um doce perfeito, quando na verdade não era e nunca será. Orientou que eu sentisse calada as dores de um estupro diário que violentava minhas ações e conceitos. Falou tantas asneiras que eu vivi a te omitir, como faço agora nessas construções de ódio. Mas, no final, sempre aparecia e soava mais alto dentro de minha fraqueza humana.
Mostrou-me, em suas tentativas de fazer um bem duvidoso, o lado sombrio de uma relação que nunca quis. Me fez agir como falsa, pilantra, mesquinha. Devia aceitar tudo como se fosse natural e sorrir quando meu mundo desmoronava por dentro; fingir prazer quando os gemidos eram de uma dor existencial e seguir em frente, esquecendo-me do que havia de verdadeiro dentro de mim.

Por isso não te dou o direito de reclamar que vive hoje com um ser estranho, uma mulher cheia de mágoas e de olhos que jamais brilharam. Você me construiu assim, projetando suas fraquezas nesse corpo que era seu e me ensinando como errar em todos os campos possíveis. E eu me permiti, temendo o peso de um véu branco que tornou negra toda uma vida.