outubro 17, 2004

Bom apetite!

Pois quase se engasgou com a espinha do peixe. Como aquele moleque atrevido tinha a cara-de-pau de lhe falar em dinheiro à mesa? “Só preciso de uns dois tostões, mais nada”. Mais nada, tem certeza? Mas que idéia mais torta a desse guri, como se a quantidade que pediu lhe fosse pouca coisa.
Passado o susto e as caras hilariantes de uma família que fingia preocupação com seu estado, era hora do troco. Troco não, porque lembrava dinheiro e isso era algo que não tinha e nem queria ouvir falar. Ora essas. Filho é besta mesmo. Parece que não percebe o esforço de todo dia e, além de não perceber, acha que os pais sabem fazer multiplicar esse maldito papel-moeda.
- Somente dois tostões, meu filho?
Esperava, porque sempre esperava alguma coisa de alguém, que o filho, pelo menos, lhe respondesse positivamente. Deveria também olhar para o chão, numa atitude de reconhecimento de sua dependência econômica. Estava atrelado ao pai. Que bela criança. Dependia dele, sozinho nada era. Nada mesmo, viu?
- É, velho. E se o senhor pudesse me descolar uns trocadinhos a mais, só por via das dúvidas, pra não ter que ficar andando com dinheiro contado.... sabe como é, né? Acho que o senhor me entende.
Opa, mas que abuso! Moleque safado, ousou em quebrar a expectativa do bom pai de família. Ele, que deu o suor, a vida, os sonhos pelos filhos e que, agora, se sente como um cachorro manco. Desprezado. Sua figura se resumia ao dinheiro, era isso? O jeito é ensaiar o choro, estremecer a voz. Que tal? Vamos lá, o drama é necessário nessas horas. E as portas, então, se abrem para o discurso que leva tempo e o resto do apetite.
- Tá ok, velho. Tudo bem. Não precisa me arranjar os trocados, então. Eu me viro com os dois contos.

Oh menino sem vergonha. Ainda não entendeu que é o problema todo não é só o dinheiro. É burrrinho mesmo. Papai sempre achou que ele era esquisito, não gostava da matemática, nem da física. Ciências de gente inteligente. De homem de futuro. Ele gostava mesmo era de ler, falava numa tal literatura e vivia gastando dinheiro com essas bobagens.
Parecia que o moleque não percebia que o negócio era mostrar que, sem o pai, sem o esforço dele, sem sua boa vontade, sem seu dinheiro – é, inevitavelmente sem o dinheiro – ele não poderia. Rapaz, reconheça a dependência.
Mais atrevido era o pai, então. Vê se pode. Mas tudo bem, o que não se faz por interesse? Numa relação de troca vale tudo.
Olhar baixo, discurso de reconhecimento, exaltação e reverências ao super pai que ocupava a cabeceira da mesa. Os dois contos em mãos. Ah, aproveita e fica com esses trocados também, talvez seja necessário, quem sabe. Preocupação de cristal. Ou melhor: de porcelana barata.
E os domingos ainda são especialmente santos.

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