março 26, 2005

Bastidores

Bastidores

Pensou em morder a azeitona, cuspir a carne verde e salgada e manter o caroço na boca. Com os dedos manejava o palito que havia conduzido aquele oval e esverdeado petisco à boca, ia fazendo uns desenhos no ar, na mesa, e ficava cada vez mais complicado para os olhos da moça acompanhar aquela seqüência de movimentos.
O jantar havia sido feito em completo silêncio. Não havia intenção de evitar assuntos desagradáveis em uma hora sagrada mas estava na atmosfera do bar os estilhaços de verbos de uma discussão que precedeu a refeição. O ar estava cortante e inspirar era, por vezes, dolorido. Manter o silêncio incomum era como estabilizar o clima. A iminência de um novo e amplo mal estava ali instalada e um soluço de ódio poderia ser fatal.
A moça olhava para suas próprias mãos. Observava as unhas, o esmalte, as frases ditas minutos antes. Ela não suportava nem mais uma garfada de comida, tamanha a indisposição emocional. E ele, como se soubesse que irritava daquela forma, mantinha-se alhures com um caroço imbecil de azeitona na boca.
Como ela não o encarava diretamente (tinha propositalmente apenas uma visão periférica de seus movimentos) não conseguia saber se a conta seria pedida ou não. Ela precisava ir para casa refugiar-se daquele casal que encenava um jantar, com falhas atrozes de atuação. Tudo o que a moça desejava era esconder-se em seu quarto, esconder-se do mundo, já que este tinha olhos similares aos dela e reprovavam aquela situação deplorável de duas pessoas que, nem juntas e nem sozinhas, e a essa altura, eram capazes de ser uma unidade. Fosse lá um par, ou o que quer que seja. Ela sentia vergonha mas ele parecia alheio a todo rubor da moça, ele e o caroço da azeitona.
Mais de uma hora já se havia passado e nenhuma palavra foi trocada. As mãos já não interessavam mais à ela. O incômodo dela era visível. Ele, porém, permanecia com o caroço na boca, manipulando o palito no ar, incessantemente. Ele não olhava para ela, em momento algum. Ele estava preocupado com a uniformidade do manejo do palito naquele que era seu ritual particular de prova para ver até onde o sangue frio da moça ia.
Um garçom, preocupado com a demora do casal sem mais consumações no bar, aproximou-se devagar e perguntou se eles desejavam algo mais.
O silêncio, agora a três, pareceu mais profundo e contorceu o estomago do casal. A atmosfera trincou e, ruidosos, os cacos afiados penderam ali. Penderam mas não caíram de imediato. Qualquer movimento em falso marcaria um corte substancial em alguém; qualquer palavra mal colocada ecoaria aguda e dolorida por horas nos ouvidos daqueles presentes.
O casal, enfim, se olhou nos olhos. Ele parou de movimentar o palito, repousando-o no prato, e cuspiu o caroço da azeitona. Ela olhou como se buscasse o infinito que certamente não estava ali. O infinito não seria medíocre como aquele par de olhos. Pelo menos ela havia crescido esperando muito mais dessa amorfa concepção de unidade, espaço, tempo. Ele só olhou.
O garçom insistiu na pergunta, agora um pouco mais sem graça que o natural. Desejariam eles algo mais?
- A conta., disse ele.
A moça esboçou um sorriso debochado e doído, levantou-se da cadeira e atirou o guardanapo sobre a mesa. Foi se dirigindo à saída do bar. Ele permaneceu sentado à mesa, agora apoiando o queixo com a mão direita, como se pensasse algo relevante.
A conta veio, ele pagou e deu uma gorjeta para o garçom. Demorou algum tempo para retirar-se por completo do local. Foi caminhando vagarosamente até o estacionamento, onde avistou a moça parada na porta do carro.
Voltariam, agora, para casa. Após um bom banho, dormiriam e nada mais seria lembrado. No dia seguinte estariam prontos e novamente dispostos a seguir seus respectivos roteiros. A continuidade de suas vidas era fundamental.
Apesar de tudo, ambos se cumprimentaram com um tradicional “Boa Noite” e dormiram aparentemente em paz.

março 07, 2005

oito de março

oito de março

serpente. navalha.
mulher decadente no canto da sala
mulher que desfila sem corpo, sem alma
mulher que é inferno, cadáver na vala.
mulher que é de lama
explana
e falha.

março 06, 2005

Entrelinhas

“E se acabou no chão feito um pacote bêbado”
/Caiu sem romantismo.Caiu rápido.Caiu como estrela morrendo.Brilhou depois do fim.Quebrou o asfalto com seu corpo duro.Pos em prática princípios físicos e matemáticos.Morreu com medo.Morreu vazio.Morreu assim.Por milésimos ofuscou o transito caótico.Por milésimos deram-lhe atenção pessoas que seguiam seus caminhos.Pessoas curiosas.Pessoas cujas vidas não se entrelaçam.Não que se importassem.Não que lhes provocasse lágrimas.Mas, era feio.Era em meio.Era estorvo.Assim, acumulava gente.Formava fila.Visão faminta querendo enxergar de perto mais uma tragédia.Cotidiana.Similar.Os mesmos finais combinados com a variação limitada de causas iguais. As mesmas frases de depois.São as almas de sempre vendo a pessoa de nunca.Só o tempo que passa não observa, mas leva o espanto dos olhos adestrados.Pernas caminham novamente.É mais um indigente.É mais um corpo só.Que não virou novela.Não virou reportagem.Virou estatística.Virou música.Virou banal./
“Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado”

(Priscila Coli)