novembro 21, 2004

Amantes bem dosados

Amantes bem dosados

Uma colherada. A colher que afunda no conteúdo cremoso, sabor delicado de mel. É iogurte. A colher adentra a boca com a fúria de quem tem fome. E sai sutil e lenta, vazia. Tudo num ritmo desnecessário. Um desespero que deixa os lábios sujos com resquícios do derivado lácteo.
O telefone chama uma vez. Duas. Só atende na terceira, misticismo. Pega o telefone móvel e se dirige à porta de vidro da varanda. A chamada é à cobrar. Enquanto espera a mensagem da companhia telefônica observa seu reflexo no vidro. A boca está suja de iogurte. Parece estar engordando. Não devia chegar à varanda só de blusa e calcinha, era feio, seria vista.
- Alô? [...] É engano.
O telefone é graciosamente arremessado no sofá. A vista que tem da varanda é quase um auto-retrato. O mar arredio e um céu cinza, barulhento.
A solidão dá vontade de tomar um banho quente. Dirige-se até o quarto e liga a tv que passa o noticiário do fim da tarde. Nada daquilo interessa. Deixa num volume baixo e entra na suíte. Tomaria banho de porta aberta para ouvir a agenda cultural que seria dada em instantes.
Despe-se e liga o chuveiro. A suíte se enche de vapor, o espelho se torna mais agradável. No fundo a tv fala supérfluos. A água quente deixa o corpo mole, dá vontade de dormir. Mas passa.
Se fosse ontem. Ah, se fosse ontem! Tudo seria diferente. Em um dia o quebra-cabeça foi manipulado e nada mais se encaixava. Era a hora de ouvir o barulho das chaves na porta e perceber a maçaneta que girava. O som da pasta que repousava sobre a mesa de tampo de vidro. Os passos até o quarto, onde ela tomava banho, a gravata sobre a cadeira, os sapatos sendo guardados. Tudo em um silêncio detalhado que agora calava o ambiente de forma assustadora. Somente o som da tv.
Mas não deveria sentir saudades, nem falta. Os vínculos eram fracos e não deveria sequer amá-lo. Não deveria, pensava assim, porque podia escolher. Tinha esse tipo de ilusão densa que podava sua insegurança natural.

O telefone chama. Uma. Duas. Três vezes, atende.
- Alô?
- Tudo bem se eu passar aí agora, meu bem?
- É engano.
Era ele.
Melhor pôr um fim por conta própria. Não queria escândalos mais tarde, problemas com esposa traída. E se engravidasse num desses descuidos? Não. Era melhor acabar com aquilo. Os vínculos eram ainda fracos.
O telefone é graciosamente arremessado no sofá. Tomaria um banho e esqueceria rapidamente dele. Vestiria uma nova peça de roupa. Tomaria nota da agenda cultural e sairia em busca de uma diversão. Quem sabe não encontraria uma boa companhia?
Ela manipulava seu próprio quebra-cabeça. Ou pensava que o fazia: dosava.

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