maio 16, 2005

onde até o inferno é doce

Onde até o inferno é doce

Não contava receber diretamente do inferno um telegrama com um acordo pré-nupcial – o assunto vinha escrito na frente do envelope. Estaria ele morto? (Dentro de seu raciocínio somente os mortos tinham acesso credenciado ao inferno, podendo entrar e sair de lá a hora que bem entendessem.) Ou vivo? (Inferno pode ser modo de dizer. Se alguém, por acaso, esqueceu de empregar o diminutivo nesse substantivo abrasado, certamente este inferno era aquele outro, aquele das putas e das bebidas.) Ou estaria ele – pior! – morto em vida? Vivo em morto? Demasiadas explicações sobre o estado da matéria humana para que aceitasse ser o receptor do telegrama infernal.

Um telegrama vindo diretamente do inferno, mas que diabos (!) seria aquilo? E que história absurda era aquela de “pré-nupcial”? Quanta bobagem, meu deus – com o perdão do uso. Quanta bobagem!

Foi que dali, do local onde foi atingido pelo remetente do Cão, resolveu ir sentar os pensamentos na poltrona mais próxima, ainda com as articulações do raciocínio bambas. Se alguém quis mexer com o homem, atiçá-lo de alguma forma, conseguiu com êxito. Com o envelope ainda lacrado, ele lançou no mundo um suspirou um pouco trêmulo. Ele suava a sua curiosidade e engolia, na saliva seca, todo o seu receio.

Pra quê tanto medo, se era batizado em três religiões e só levantava da cama depois de se benzer três vezes? (Três era número de sorte; tudo o que ele fazia tinha esse ímpar no meio.) Logo respirou fundo, contou até três e deu três estaladas de dedo antes de verificar o conteúdo do telegrama. A coragem do homem o saudou.

Telegrama aberto. Pés delicados sobre um salto alto. Tornozelo – ele adorava tornozelos! Pernas bem torneadas. Uma saia... uma pequena saia. Pelos longos e negros cabelos ele logo pôde perceber: era Maria Luiza que atravessava a rua calmamente, sem sequer notar que ele estava no carro esperando o sinal vermelho ficar verde. Era ele, recebendo telegramas daquele sujeitinho que aposta na difundida afirmação de que a carne é fraca.

Ora veja que astúcia! Enviar um telegrama assim em forma de mulher, em pleno trânsito, e ainda explicitar que o conteúdo era pré-nupcial. Logo ele que não queria núpcias coisa nenhuma. Se bem que Maria Luiza... essa era pra casar e fazer tudo bem direitinho.

Maria Luiza foi passando devagar em forma de mensagem escrita: ela era as letras do telegrama; era, ao mesmo tempo, o significado da mensagem e a forma como a mesma se manifestava. Ela era tudo. Maria Luiza foi passando devagar... até que passou.

Telegrama lido, queimou feito a brasa enviada pelo remetente danado. Ele não estava morto – imagina se um morto ia sentir tudo aquilo que ele sentia ao ver a bela moça desfilar na passarela de asfalto? Também não estava vivo: como dizer-se vivo sem ter nos braços aquela doce amada? (Romantismos também afloram no ápice do amor carnal.) Estava ele morto em vida? Ou vivo em morto? Não, forte demais! Ele estava, apenas, um pouco apaixonando.

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