dezembro 26, 2008

Vestindo

Colocou um vestido em pleno dia de chuva. Diriam que era chuva de verão - e então estava justificada escolha pelo vestido. Espera pelo sol no fim da tarde, talvez. Prenúncio almejado de sol para o outro dia, cigarra que vai cantando, asfalto esquentando e exalando uma tormenta quente, baratas subindo pelos bueiros, e estrelas despontando no alto céu claro da estação quente. Sim - estava justificado ter saído de vestido em plena chuva. Era chuva de verão. Mãe, é chuva de verão. Pai, é chuva de verão. Amigos, é chuva de verão. Amor, verão. (Pois que é preciso justificar...)
Cada passo contornando uma das gotas debruçadas. Há mais liberdade nas pernas, na diposição. É uma ousadia doutrinar o cinza céu com a roupa que se recolhe no armário. É uma obrigação que a chuva seja passageira, como sempre é, quando vestimos um vestido e há um temporal declarado pelo lado de fora.
É reflexo, daqueles que em dias exatamente assim, chuvosos, quando visitados ligeiramente pelo sol, terminam em arco-íris. Reflexo. Água atravessada por matizes, espectros de luz, possibilidades e apelo firme por coloração, mesmo quando há água gelada correndo pela pele e alardeando rumor de frio.
- Sinto frio, e coloco um vestido. Porque espero o reflexo, os tons coloridos surgindo ao longe, por mais inatingíveis que sejam sempre - alguém já conseguiu tocar um arco-íris?
- Sinto frio, e coloco o vestido. Eu vou dançando como se andasse, ouvindo a música dos meus sonhos, porque eu imagino que você um dia regressa da forma como eu sempre planejei para mim.
- Sinto frio, e coloco vestido.
Está chovendo e eu sinto frio, e eu quero estar exposta à água e à lama também, calcei sandálias rasteiras, saí com os cabelos desgrenhados, eu supus poder encontrar uma sombra naquela esquina, eu queria encontrar a sombra da minha esquina, eu quis.
Sinto muito, mas eu finjo, eu fujo e me arrepio, me arrependo, e coloco um vestido no dia de chuva, esperando que o sabor da nicotina não tenha sido fruto de um espectro de fumaça, aquela lembrança do sabor, aquele estranha presença, eu coloco um vestido fino e está cinza, úmido e ameaçador do lado de fora - mas eu finjo.
Acordei sozinha pela madrugada. Talvez eu sonhasse com o sabor; porque o que faço, senão sonhar?
Virei para o lado, voltei a dormir. Acordei para sair pela chuva. Porque, o que faço, senão sonhar?

Eu sinto saudades do que não é eterno, e talvez por isso eu consiga sentir saudades. Debruçou-se em meus braços um e dois e três, e todos não são o meu sonho, porque para o meu sonho eu me visto, coloco um vestido, lembro do sabor, fumo um mesmo cigarro, e para eles, o um, o dois o três, os muitos, eu não me visto, na verdade, eu tiro o vestido, para esquecer o sabor, para desapego completo, para esquecer, esquecer, esquecer...
Era uma noite quando eu estive, em pensamento, ao seu lado.
É todo dia que eu escrevo, em pensamento, a mesma ladainha marcante.
E o sabor nem merece.
Então eu olho toda essa chuva, toda essa água e vejo: é verão! Justifico, para não levantar suspeitas. E minto rigorosamente, para conservar a decepção. Coloco vestido em dia de chuva, falo na terceira pessoa, eu sou outra e procuro toda espécie de sabores, porque eu tenho grudado o sabor, e eu lembro com pesar que, talvez, tenha sido a última vez.
Coloco o vestido em plena tempestade.

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