dezembro 26, 2004

O apaixonado

O apaixonado:
sobre como eu pude ser tão tolo.


Explicação I:
Certa vez ouvi dizer que não há antídoto para a curiosidade humana. Uma vez despertada, há de se conviver com ela. Ou dar-lhe um fim digno, procurar saná-la. Veja que não tenho nada contra os curiosos, se tivesse estaria pondo-me contra mim. A questão que me aflige brutalmente nisso tudo é o lado maligno da curiosidade, quando a tênue linha divisora entre o que é ou não salutar é rompida pela indiscrição. Quando, durante o seu banho, eu reviro os bolsos da sua camisa, verifico as chamadas no celular, dou uma fiscalizada na sua bolsa. E pior: quando estamos frente a frente e eu leio nos seus olhos as cartas de amor que você fez questão de esconder.

Explicação II:
Não há nada pior que as revelações íntimas que um olhar sem compromissos pode entregar. Hoje enquanto tomávamos o café da manhã você não falava nada, o silêncio era irritante e contínuo. Não havia porque prolongá-lo quando resolvi perfurá-lo delicadamente trazendo a sua pessoa para o centro de um proeminente diálogo:
- Ana, você está tão calada mas ainda assim me parece tão bem. Deixei de saber de alguma coisa sua?
Uma rala resposta sonora foi emitida por sua boca que saboreava o presunto que eu mesmo fiz questão comprar antes que você acordasse: “Hum, hum”. Como alguém pode quebrar de maneira tão eficaz um homem? Por que responder minha frase de palavras pensadas antes de serem docemente encadeadas, uma por uma, com um simples hum-hum? Eis um belo retrato do que estávamos sendo ultimamente, não por minha culpa. Meu esforço era visível e tolo. Mas ainda era meu, era esse agradável pronome que eu só podia empregar quando falava de esforços. E eu insisti neles:
- Olha pra mim, Ana. Você não parece à vontade. Anda, olha pra mim.
E aí você olhou. E eu fui extremamente indiscreto.

Explicação III:
Compreendo que estejamos desgastados, mas só compreendo pela prática repetitiva. Hoje é mais um domingo em que assisto sozinho o jogo de futebol pela tv, nem ao Maracanã eu quis ir. E logo agora, logo agora que eu já pensava que seria o momento ideal de termos o nosso filhinho, o flamenguistazinho por você tão esperado, você me apronta essa. Ah, sim! Na verdade você queria mesmo uma menina que, além de botafoguense, pudesse sair com você para ir ao salão fazer unha e cabelo. Tudo bem, tudo bem. Veja como as coisas mudaram, eu nem discutirei dessa vez. Que venha a menina, vou amar da mesma forma. Mas antes, que venha a mulher, a minha mulher que ainda não chegou.

Explicação IV:
Não há mais cerveja na geladeira, o sol já caiu, o jogo acabou. E agora, José? Se ao menos eu me chamasse José, talvez soasse mais atraente para Ana. Será José o nome dele? Se eu vier a descobrir o sobrenome do sujeito tratarei de dar-lhe uma lição. Mas isso me é curiosidade secundária. A primária é saber aonde a minha mulher se meteu, já é noite e nada. Não, não posso ter sido picado por esse veneno maldoso. Eu não quero mas meu corpo me conduz automaticamente para as gavetas do escritório de Ana. Minhas mãos trêmulas de culpa reviram aqueles papéis todos, uma foto de quando namorávamos (eu sem barba e mais magro), contas, telefones, papéis, papéis, papéis e cartão do Bar Aurora. Cartão do Bar Aurora? Por mais que me doa, afinal não sei o que me espera no bar, eu irei lá. É, irei sim, a cerveja acabou.

Explicação V:
Bar fechado. Mal pude acreditar. Estava em destroços. Crente, crente que seria o novo Holmes carioca. Eu era cacos. Meus pedaços ainda tinham alguma dignidade. Juntaram-se e me conduziram até em casa.
Ao chegar na portaria do prédio, alguma vibração visual quebrou meu momento introspectivo e me trouxe novamente para a realidade. O porteiro me olhava estranho. Parecia que sabia de algo e eu, pela primeira vez no dia, não tive a menor curiosidade em saber do que se tratava.
- Boa noite, seu José.
Cumprimentei-o e me dirigi ao elevador que lá me esperava já sabendo do fracasso da minha missão. Cheguei no meu andar. Minha porta. Minha chave rodando na porta. Meu apartamento, a sala. Acesa? Estaria eu tão seco de curiosidade a ponto de ter deixado o apartamento com a sala acesa? Não.
Era você, Ana, que havia chegado, o corpo atirado no sofá. Dessa vez não tive o cuidado de pensar antes de falar:
- Onde você estava, bandida? Quer me matar?
E você, incrível, você me respondeu com palavras:
- Matar de curiosidade ou de amor?
Silenciei. Eu tinha ali duas opções: descobrir onde você havia se metido o dia inteiro ou, quem sabe, reatar contigo, declarando tudo o que eu ainda sentia.
Na minha condição, não titubeei:
- De amor.
Reatei.

Explicação VI:
Porque o amor, cega.

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