dezembro 11, 2004

Palhaçada

Palhaçada

*Sou palhaço do circo sem futuro / Um sorriso pintado a noite inteira / O cinema de fogo / Numa tarde embalada de poeira* E a lona rasgada no alto / No globo os artistas da morte / E essa tragédia que é viver / E essa tragédia / Tanto amor que fere e cansa* - “O palhaço do Circo sem futuro”, Cordel do Fogo Encantado

O circo. Daqui onde estou posso ver de tudo. O picadeiro tem um cheiro próprio, é a serragem. Ou é magia? Chego antes mesmo do espetáculo começar e fico ansioso. Quero ver os palhaços. Quero ouvir as crianças, sentir o cheiro de pipoca, provar a tristeza do fim do espetáculo. Desejo cegamente que tudo se inicie porque preciso gozar o término. Começar é quase a certeza de que haverá fim e com isso eu estremeço num prazer interno. Quero os refletores refletindo luz de cores diversas. O picadeiro deve ser a porta da terceira dimensão, da quarta, da quinta, menos da infinita. Eu quero ver os palhaços a qualquer custo.
Posso ouvir o murmurinho das pessoas que adentram a lona vermelha. O som vai se amplificando, ouço risos, nomes, ouço a feliz ansiedade de olhos que brilham. Será que é essa a hora? É agora que começa?
Quero ouvir o senhora e senhores clássico e a equipe agradecendo a presença de todos. Quero ver a bailaria delicada me lembrando a melancólica melodia de uma caixinha de música. Quero ouvir os motores das motos do globo da morte. Quero. São tantos os desejos que carrego comigo que todos transbordam na conjugação deste que é o primeiro dos verbos a serem aprendidos. Melhor: antes de aprendidos já são praticados. Eu quero ver os palhaços, agora.
Eis que o espetáculo se inicia me mantendo estático durante bom tempo. O malabarista não teme cair dali de cima? E o domador, será que nunca teve medo dos leões o desobedecerem? A bailarina...! Sua dança esbanja técnica, harmonia, que belo, que belo! Meus olhos brilham como o de uma das crianças. É tudo novidade, é tudo interessante. E eu quero que seja contínuo, quero pensar que já vai acabar e sentir fisgadas e dores de estômago.
E já vai acabar. Olha o globo da morte! Olha o mágico! Veja, os elefantes são incríveis! Mas e o palhaço, e o palhaço? Quero vê-lo, a mim só interessa o palhaço e o fim.
E então o mestre de cerimônia anuncia a última atração. Sinto o prazer por saber que deleitarei a tristeza do fim em instantes; e sinto receio de que o palhaço não seja tal atração. Receio em vão. No centro do picadeiro surge o palhaço e eu choro. Reflexos são sempre duros de serem encarados. Ferem os olhos.
O palhaço faz graça, cai no chão, é enganado pelo assistente. E ri. Eu rio. Todos riram juntos. O palhaço não tem compromissos, não quer se superar. Ele faz o que pode e ri. Palhaços de verdade são tipicamente palhaços. E como é bom vê-lo! Acho que me sinto mais leve.
Fim de espetáculo. A sensação de que agora aquilo tudo que foi presenciado é passado, de que não há como viver aquilo novamente, dói e é deliciosa. Todos, inclusive eu, dirigem-se para a saída. Fica para trás um mundo.
Os créditos sobem e as luzes se acendem.

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