dezembro 19, 2004

Tentativa primeira de não sofrer de saudades

Tentativa primeira de não sofrer de saudades

Não seria a saudade simples questão de costume desfeito? Rotina perdida?
Porque se há certeza nesse mundo, esta é a ação-reação de fatos que distam de teorias. Porque a vida que inicia, termina. A porta que abre, fecha. A luz que acende, apaga. A comida apetitosa, merda.
Talvez a saudade não seja nada disso do que nos foi ensinado. Não seja o tipo de prótese que dói, muito menos a fisgada no membro que já perdemos. Acho até mesmo que chronos não tem boca, nem dentes para morder.
Nenhum homem produz sem que haja a angústia e por isso Deus propôs a tristeza. A relação que há entre estes dois nomes já desbotados pelas dores excessivamente românticas é que o último serve perfeitamente de matéria-prima para o primeiro. E gostaram tanto dessa tristeza amarga aqui em baixo que adotaram-na em todos os aspectos.
O que seria da vida se não houvesse o fantasma da perda e do afastamento rondando mórbidos pelos vazios da cabeça? Entre uma reentrância e outra de nossa massa cinzenta encontra-se grudada uma dessas formas fantasmagóricas, sempre a nos alertar sobre o perigo do fim. Que sabor teriam as coisas caso estas fossem eternas? A certeza de um namoro eterno seria veneno na relação. A precisa presença de alguém querido, sem que houvesse a reação, talvez nunca despertasse a vontade de lhe dizer positividades e demonstrar carinho, amor. Quem sabe nunca nenhum sentimento fosse sequer notado. Porque o que é constante, aquilo que está sempre lá, decora tão perfeitamente os dias que passa desapercebido aos nossos rudes olhos. Eu, por exemplo, não sei das flores que brotam no meu jardim.
Para satisfazer-se, o homem moldou sentimentos a seu próprio favor. A proposta divina foi fagocitada sem resistência e, depois de digerida, deu origem a seus derivados. Sentimentos que se mesclam uns com os outros, outros genuínos que se utilizaram apenas de matérias-primas para nascerem. Todos adicionando elementos ao âmago da angústia, ponto ótimo de criações e reflexões. Dentre todos estes, eis que surgiu um em especial: saudades.
Sentir saudades é amplificação de dramas, é substrato para vida. É também, em certos casos, receio. Saudades é ambíguo demais para ser exclusivamente puro: há saudades que são tristes e há outras que são sorrisos nostálgicos. Este sentimento foi concebido pelo homem que sempre precisou da angústia. Senão no presente com sofrimentos de naturezas infinitas, precisou desta no passado ao reviver horas, dias, semanas e períodos à própria escolha.
Não vejo, portanto, dor na saudade; vejo a dura necessidade humana de sentir gotejamentos ácidos pela alma. E contorcer-se, relembrando e marcando a ferro a certeza de não poder mexer mais naquilo que se passou. Diferentemente da ansiedade pelo futuro que nos permite planejar fatos, mesmo que estes não venham a ocorrer. Pelo menos o sabor dos planos tem a possibilidade de passar por nossas bocas secas.
Saudades não é castigo. Saudades não gera estrangulamentos no coração e muito menos nós na garganta. E, se ao tirar a poeira das lembranças os olhos se inundarem banhando a pele com delicado e fino líquido, digo que não se trata de efeito da saudade. Digo o mesmo caso o sentimento de oco por não poder abraçar alguém invada o peito, murchando o brilho da vida.
Saudades não existe se você não quiser. Existe, a menos que você deseje com ela sofrer, utilizar-se dela para seu proveito.

Crê nisso tudo?
Eu adoraria acreditar.

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