abril 06, 2005

Narrativa um

Narrativa um

Existe um juízo no corpo que jamais permite perda como palavra final. Por menos razão que você tenha, o juízo insiste em articular argumentos que te reservem alguns segundos de embate psicológico com seu até então vencedor oponente. Bobagens da máquina humana. Orgulho cristalizado, pontiagudo, pronto para ferir quando for preciso. E por conta disso, misturado ao suor das minhas mãos, a tremedeira no couro que protegia a pequena faca que eu levava no bolso, sacolejava meu pensamento em uma só direção. Algumas poucas aulas de biologia indicaram-me que o alvo seria na altura do peito, um pouco para a esquerda, mas não totalmente. Eu queria ver o esguicho rubro do sangue, queria ver o líquido ainda vivaz jorrar. Senti-lo quente enquanto o homem que desafiou minhas faculdades fosse esfriando, os olhos virados, os gemidos de dor e morte. Minha mão contraía-se a cada pensamento sanguinário que bombardeava minhas intenções futuras. Minhas células já trabalhavam a mil por hora. Meus nervos estavam notoriamente mais sensíveis. Eu comprimia aquele couro já úmido, protetor da pequena faca afiada. Com os dedos ia retirando lentamente a faca de dentro da sua proteção. Meus olhos eram tão fixos, secavam o sujeito à minha frente que seria muito em breve vítima de si mesmo. Olhávamos um nos olhos do outro. Eu não podia saber o que ele tramava. E nem ele podia imaginar ter de providenciar um funeral. Eu olhava sem quase piscar porque via no rosto do rapaz o passo-a-passo da ação que eu executaria com sucesso.
Sem tirar os olhos de cima dele, caminhei como se me redimisse. Afinal, eu só estava ali por tê-lo desafiado. Querendo provar minha capacidade de lidar com os negócios postos, por ele mesmo, em minhas mãos e em menos de um mês fracassados, resolvi convidá-lo para um duelo. O vencedor, caso fosse eu, teria suas dívidas perdoadas; se fosse ele, teria as dívidas pagas. Atracamo-nos pelo chão e depois de alguns doloridos socos no estômago, eu decidi aceitar a derrota. Mas depois que o sangue esfriou e o valor da dívida monetária e moral me estalaram na cabeça, optei pela solução de exterminar o homem.
Fiquei a dois passos dele. Nos segundos de controlada tremedeira, puxei do bolso a faca já sem a capa de couro e executei-o olhando em seus olhos, a sangue frio, como desejei. A faca ficou imunda. Limpei-a na blusa do falecido. Senti meu corpo latejar, como se meus batimentos cardíacos tivessem acelerado e a pressão sanguínea aumentado. Deixei passar algum tempo até que decidi levantar-me e empurrar o cadáver do sujeito para baixo de uma mesa que havia no local.
Lembro-me de ter pensado que não sabia que sangue podia ser tão denso. E como me faltava um maço de cigarros, pus minha faca em sua devida proteção no bolso e saí em busca de algum. No caminho encontrei a mulher do falecido, já viúva mas ainda inconsciente. Ela me cumprimentou e perguntou pela minha família, em especial pela minha mãe, muito amigas. Eu lhe disse para passar na minha casa para fazer uma visita e ela aceitou prontamente. Ela parecia meio vadia e ali eu já começava a planejar que depois da diversão na cama eu lhe executaria com muito amor, muito afeto. Com o dinheiro economizado no não pagamento da dívida eu até poderia lhe providenciar um enterro.

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