fevereiro 27, 2005

Mãos

Mãos

Vi algumas mãos reunidas. Umas em grupo, outras em dupla semeando o que há de mais belo entre o estado único dos casais. Algumas mãos caminhavam solitárias também, fazendo com que o frio da praça úmida gelasse ainda mais meu coração. Outras mãos apenas acenavam como se estivessem a despedir-se de algum par de mãos saliente que teimava em sair dali. Uma mão trajava um pretinho básico: luvas de couro; me disseram que é última moda em Paris.
Veio com a corrente de ar que queimou de leve minha pele curiosa: e as mãos que estão do outro lado do mundo? Paris me faz lembrar o outro lado do mundo. Talvez sejam mãos mais sujas. Ou serão essas mãos vítimas de preconceitos culturais?
Sendo vítima a palavra de ordem, apanhei de mãos calejadas vindas da África. Mãos duras, ásperas, não por vontade própria. Algumas andam em par, outras teimam em nascer; mas a imagem que me chega é de mãos sofredoras, de uma forma ou de outra.
Voltando à praça, locação física de minha mente. Crianças têm mãos inquietas que entram nas bocas, cavam o chão, acariciam cachorros. Como faz frio, nenhuma dessas mãozinhas se atreve a sair do bolso dos casacos. Há também mãos amadurecidas, por dentro ou por fora, que se preenchem de inquietação: é ver moça bonita passar que a mão já quer se manifestar. Tudo no bom sentido.
Vejo uma mão servindo de lenço. Seca as lágrimas que jorram dos olhos da menina. Que mal terá sido capaz de ferir o harmonioso conjunto de feições da menina, causando-lhe tão espontâneas lágrimas? Alguém lhe oferece ajuda. A mão, com notório desânimo, faz sinal apontando que é desnecessária a preocupação.
Luminosidade demasiada no céu de inverno. Mas como? O sol agora dorme e libera o palco para as nuvens cheias de sentimento doce e ameno. Com algum esforço posso reconhecer a claridade: é um coração cheio de amor lançado ao ar, aparentemente sem dono. E, saindo apressado de perto da chorosa menina, vejo um par de mãos ligeiras buscando esconderijo. Mãos de um meliante de sonhos e paixões. Em um só golpe no peito da menina que agora secava em lágrimas, roubou-lhe o coração por inveja e o atirou para o alto. Encheu o céu de amor mas esvaziou a pobrezinha. Consciente do erro, o ladrão lavou as mãos e acenou um adeus murcho.
Ninguém aplaudiu.

fevereiro 20, 2005

Indução

Indução

E quando já não se sente?
Quando o frio invade
Calando a boca que já não ouve
E quando já não se enxerga?
Quando os olhos dormentes se fecham
Fazendo sumir a realidade
E quando já não se pode mover?
Quando os pés já não andam
E as mãos já não tocam
E quando a dor já não chora?
Quando o coração já não bate
É quando o infinito se aproxima
E o finito se acaba
E quando já não se é?
Quando se perde o sentido
Matando-se indivíduo
É quando se morre.

(Priscila Coli)

fevereiro 18, 2005

O outro lado do amor

O outro lado do amor

Desconheço, desconverso, pelo avesso
desconexo,
debochado, defasado, que espreita
demorado,
de manhã, de qualquer jeito, desleixado
depravado,
desculpado, degolado, despropositado.
Pelo avesso é tudo igual:
um que espreita o outro
num desleixo de amor;
um que bate, outro que apanha
no despropósito da dor.

fevereiro 03, 2005

No departamento

No departamento

O trabalho às vezes pode ser exaustivo e desgastante mas, por ser necessário, acaba se tornando uma atividade suportável. Tenho muitos amigos que alegam que não trabalhariam nem uma hora sequer caso possuíssem um patrimônio enorme ou coisa que o valha. Bastaria ter algo que garantisse a sobrevivência pelo ócio e o trabalho não se encaixaria na vida de nenhum deles.
Foi pensando nisso que eu ouvi apática o sermão que o chefe do departamento me dava, aos berros, já que ele provavelmente deve ser um infeliz e somente nesses efêmeros minutos de autoridade sente algum tipo de prazer desconhecido. Nessas horas é que eu me lembro de ver minha mãe chegando exausta do trabalho, com um mau humor agudo, laconicamente acabada; geralmente culpa de chefes desse tipo. E aí ela dizia que o dia havia sido ruim, que seu chefe havia passado dos limites mais uma vez, mas que era assim que as coisas deveriam ser naquele momento. Depois ela arranjaria algo melhor, não agora; a cartomante havia dito que a sorte estava próxima porém era preciso um pouco de paciência para saber o momento certo de agarrá-la com as unhas (mal feitas, diga-se de passagem). Eu pouco falava sobre isso. Eu, sentada na frente da televisão, sendo absorvida pelo conteúdo televisivo da mesma forma – ou mais – como eu absorvia meu macarrão instantâneo meio morno.
Quando eu me levantava para lavar a louça e minha mãe já havia relaxado um pouco, eu perguntava sobre como seria o seu dia seguinte. A resposta não variava nunca: o dia seria no escritório e tudo dependeria do seu chefe. E aí, para estragar tudo, eu dizia que o chefe não era seu chefe mas sim chefe do departamento. E que era por essa submissão consentida, implantada sutilmente no discurso não só dela mas de todos que com ela trabalhavam, era por isso que ela mal conseguia enxergar os abusos do chefe, a carga horária excessiva, essas coisas. Então eu era mandada imediatamente para o quarto e a noite acabava para mim.
Tudo isso me borbulhou na cabeça enquanto o chefe falava, falava, pegava ar, e falava. Quem estava por perto até achava que eu havia cometido um crime imenso, traído a empresa, desviado dinheiro para o caixa dois. Mas não era nada de importante; não a ponto dele desperdiçar tanto tempo com a minha cara de idiota. O meu erro havia sido ter apagado um arquivo de extrema importância para o departamento mas, como o chefe mesmo disse ao final do sermão, sorte que aquele escritório ali era de um alto nível tecnológico e trabalhava juntamente com as maiores empresas de ponta. Ou seja, havia alguém capaz de recuperar o arquivo perdido. Dizia o ranzinza chefe que aquilo, aquele sermão todo, era para que o erro nunca mais voltasse a ocorrer. E minha língua coçava para dizer que aquilo, aquele sermão todo, era para ele se sentir um pouquinho melhor perante aos funcionários do departamento que, apesar de submissos nas relações de trabalho, eram extremamente autônomos em suas relações sociais.
É aí que eu revejo os pensamentos daqueles amigos que adotariam como causa maior o ócio, caso fossem milionários. Tantas coisas passam pela sua cabeça durante uma bronca banal dessas, e tantas palavras se formam prontas para explodirem em ironias para precisos destinatários que, só a ameaça do monstro-desemprego nos faz calar a boca, ficar apática e fazer cara de tonta diante de um chefe estressado assim.