fevereiro 03, 2005

No departamento

No departamento

O trabalho às vezes pode ser exaustivo e desgastante mas, por ser necessário, acaba se tornando uma atividade suportável. Tenho muitos amigos que alegam que não trabalhariam nem uma hora sequer caso possuíssem um patrimônio enorme ou coisa que o valha. Bastaria ter algo que garantisse a sobrevivência pelo ócio e o trabalho não se encaixaria na vida de nenhum deles.
Foi pensando nisso que eu ouvi apática o sermão que o chefe do departamento me dava, aos berros, já que ele provavelmente deve ser um infeliz e somente nesses efêmeros minutos de autoridade sente algum tipo de prazer desconhecido. Nessas horas é que eu me lembro de ver minha mãe chegando exausta do trabalho, com um mau humor agudo, laconicamente acabada; geralmente culpa de chefes desse tipo. E aí ela dizia que o dia havia sido ruim, que seu chefe havia passado dos limites mais uma vez, mas que era assim que as coisas deveriam ser naquele momento. Depois ela arranjaria algo melhor, não agora; a cartomante havia dito que a sorte estava próxima porém era preciso um pouco de paciência para saber o momento certo de agarrá-la com as unhas (mal feitas, diga-se de passagem). Eu pouco falava sobre isso. Eu, sentada na frente da televisão, sendo absorvida pelo conteúdo televisivo da mesma forma – ou mais – como eu absorvia meu macarrão instantâneo meio morno.
Quando eu me levantava para lavar a louça e minha mãe já havia relaxado um pouco, eu perguntava sobre como seria o seu dia seguinte. A resposta não variava nunca: o dia seria no escritório e tudo dependeria do seu chefe. E aí, para estragar tudo, eu dizia que o chefe não era seu chefe mas sim chefe do departamento. E que era por essa submissão consentida, implantada sutilmente no discurso não só dela mas de todos que com ela trabalhavam, era por isso que ela mal conseguia enxergar os abusos do chefe, a carga horária excessiva, essas coisas. Então eu era mandada imediatamente para o quarto e a noite acabava para mim.
Tudo isso me borbulhou na cabeça enquanto o chefe falava, falava, pegava ar, e falava. Quem estava por perto até achava que eu havia cometido um crime imenso, traído a empresa, desviado dinheiro para o caixa dois. Mas não era nada de importante; não a ponto dele desperdiçar tanto tempo com a minha cara de idiota. O meu erro havia sido ter apagado um arquivo de extrema importância para o departamento mas, como o chefe mesmo disse ao final do sermão, sorte que aquele escritório ali era de um alto nível tecnológico e trabalhava juntamente com as maiores empresas de ponta. Ou seja, havia alguém capaz de recuperar o arquivo perdido. Dizia o ranzinza chefe que aquilo, aquele sermão todo, era para que o erro nunca mais voltasse a ocorrer. E minha língua coçava para dizer que aquilo, aquele sermão todo, era para ele se sentir um pouquinho melhor perante aos funcionários do departamento que, apesar de submissos nas relações de trabalho, eram extremamente autônomos em suas relações sociais.
É aí que eu revejo os pensamentos daqueles amigos que adotariam como causa maior o ócio, caso fossem milionários. Tantas coisas passam pela sua cabeça durante uma bronca banal dessas, e tantas palavras se formam prontas para explodirem em ironias para precisos destinatários que, só a ameaça do monstro-desemprego nos faz calar a boca, ficar apática e fazer cara de tonta diante de um chefe estressado assim.

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